terça-feira, 21 de outubro de 2014

o paso (errado) do elefantinho



Em defesa da trama: Vonnegut e uma freira em apuros


Autor: sergiorodrigues


kurt-vonnegutNa entrevista que Kurt Vonnegut (1922-2007) deu à "Paris Review", lida há muitos anos, há um trecho que nunca me saiu da cabeça. Nele o escritor americano, autor de "Matadouro 5", faz com a verve que lhe era característica uma defesa da boa e velha contação de histórias:
Garanto a você que nenhum esquema narrativo moderno, nem mesmo a ausência de enredo, dará ao leitor satisfação genuína, a menos que uma daquelas tramas à moda antiga seja contrabandeada para dentro da história. Não defendo a trama como representação acurada da vida, mas como forma de manter o leitor lendo. Quando eu dava aulas de criação literária, costumava recomendar aos estudantes que fizessem seus personagens desejar alguma coisa imediatamente – mesmo que apenas um copo d'água. Personagens paralisados pela ausência de sentido da vida moderna ainda precisam beber água de vez em quando. Um dos meus alunos escreveu um conto sobre uma freira que ficou com um pedaço de fio dental preso entre os molares inferiores e não conseguia se livrar dele o dia inteiro. Achei isso maravilhoso. A história lidava com questões muito mais importantes do que fios dentais, mas o que mantinha os leitores presos era a ansiedade de saber quando o fio dental seria finalmente removido. Era impossível ler aquele conto sem sentir um incômodo entre os dentes. (…) Se você exclui a trama, se elimina o desejo de alguém por alguma coisa, você exclui o leitor, o que é uma coisa muito feia de fazer.
Não sei se a última frase, com sua generalização implacável, estará correta: há leitores de todo tipo e alguns deles devem sentir prazer com histórias (vamos manter a palavra, à falta de outra) absolutamente destituídas de conflito, desejo ou mesmo personagens, blocos de arte conceitual em que tudo o que se passa na página ocorre num plano meramente formal. Excluir essa possibilidade também seria um erro: se a literatura for alguma coisa, será o reino da liberdade autoral absoluta.
O que acredito que Vonnegut quis dizer é que, ao eliminar o personagem e seu desejo por algo que ele não tem – condições básicas para se estabelecer com o leitor um pacto narrativo de suspense e, finalmente, (in)satisfação –, a literatura exclusivamente conceitual deixa ao relento uma imensa maioria de leitores. Isso me parece inquestionável e não vale apenas para o realismo: nada impede que, em vez de um copo d'água, o personagem deseje com ardor e por fim consiga, sei lá, cavalgar um unicórnio ou se transportar para dentro de um videogame.
Uma rápida consulta às listas dos livros mais vendidos, quase todos feitos de trama pura ou quase isso, basta para comprovar o que foi dito acima. O que complica a questão é que essa preferência popular tão categórica pela contação de histórias leva muita gente – sobretudo críticos, mas também escritores – a menosprezar o enredo, o entrecho, a intriga, o mistério, a surpresa como ferramentas menores da literatura, recursos identificados com o lado ingênuo ou menos sério da arte. Algo que deve ser simplesmente eliminado ou, no mínimo, não sendo merecedor de grande atenção, resolvido rápida e porcamente a fim de deixar o terreno livre para o que realmente importa – seja lá o que isso for. Não duvido que em tal erro de julgamento resida parte da explicação para que as listas de mais vendidos do início deste parágrafo estejam há anos tão melancolicamente despovoadas de brasileiros.
A ideia de "contrabando" sugerida por Vonnegut me parece uma estratégia artística mais inteligente. Aquela freira às voltas com seu fio dental torturante pode ter vivido ao longo do conto, que não nos é dado conhecer, todo tipo de conflito casca-grossa – teológico, sexual, linguístico, cognitivo, o diabo –, mas o leitor se veria menos disposto a acompanhá-la em tais profundezas se não estivesse preso à história pelo fio prosaico que ela traz entre os dentes. Estamos diante de um inequívoco MacGuffin.
Termo mais conhecido pela turma do cinema, MacGuffin é uma palavra popularizada por Alfred Hitchcock para designar aquele elemento da história que impulsiona a ação dos personagens e que, no fim das contas, descobrimos não ter tanta importância assim, pois o verdadeiro foco da narrativa era outro. O que vale para o cinema e a TV vale também para a literatura – ou para qualquer forma de contar histórias. Não por acaso, um MacGuffin clássico é a estatueta que dá título ao romance "O falcão maltês", de Dashiell Hammett, e também ao filme de John Huston nele baseado (batizado de "Relíquia macabra" no Brasil). Descobrimos perto do fim que a preciosidade em nome da qual tanto sangue foi derramado é falsa, mas isso já não tem importância.
Uma boa frase de autoria duvidosa, mas popularizada por John Lennon na canção Beautiful boy, sustenta que "vida é aquilo que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos". Pois história – ou pelo menos um tipo bastante interessante de história – é aquilo que acontece enquanto estamos ocupados imaginando o que será feito do MacGuffin. Nesse meio tempo pode acontecer nas páginas o que o autor quiser ou puder fazer acontecer, inclusive a arte literária mais rigorosa e exigente. Com a vantagem de que, nesse caso, o leitor vem junto.

PESSOA 2


millor e a sabedoria



Cortázar, na direção do roman­tismo exagerado?

Autor: sergiorodrigues


cortazar e seu gatoDeixei passar em branco de propósito o centenário de Julio Cortázar, dia 26 de agosto. Se tenho a esquisitice (admito que seja) de não gostar muito de efemérides, que me parecem pretextos meio preguiçosos para falar da obra de qualquer artista, no caso do escritor argentino um motivo especial me levou a não pular no bonde da comemoração coletiva. Cortázar foi importante demais na minha história de leitor e, por extensão, de escritor. Certo sentimento de posse e quem sabe até algum ciúme podem ter contribuído para motivar o silêncio, mas nem tudo é egoísmo.
Se era para falar dele, que fosse algo significativo e não apenas uma fieira de dados biográficos temperados com adjetivos jornalisticamente corretos. Algo que me reconectasse com o prazer mágico que sua companhia me proporcionou, livro após livro, naquele início dos anos 1980 em que por algum tempo todos os demais escritores me pareceram pedestres e sem graça. Algo que explicasse por fim o fato de, passado o sortilégio, eu jamais ter voltado a ler o homem. Tarefa difícil, como se vê, principalmente em meio à barulheira do mundo. Mas agora o mundo voltou a se calar e eu não tenho mais desculpa.
Cortázar foi o escritor mais marcante da minha primeira juventude. Eu queria ser Cortázar quando crescesse – e até que cresci bastante, embora nem perto do suficiente para alcançar um sujeito que, por sofrer de um distúrbio hormonal chamado acromegalia, nunca parou de espichar, morrendo aos 69 anos com mais de dois metros de altura. À parte as qualidades de sua prosa precisa, musical, evocativa, e a habilidade de abrir no cotidiano as mais engenhosas passagens secretas para o misterioso e o sublime, o encanto que Cortázar exercia sobre mim vinha da impressão de que ele não conhecia fronteira entre Arte & Vida.
Como nenhum outro escritor de seu tempo, aquele me parecia um cara íntegro, inconsútil – palavra que, aliás, só aprendi muitos anos depois. Ora, aos vinte anos de idade não existe nada mais sedutor para um aspirante às letras do que a ilusão de que viver e escrever podem ser um único ato. Não tanto viver de escrever, embora a ideia de ganhar dinheiro com livros nunca seja desprezível, mas viver através do escrever. Cortázar não era rico, todo mundo sabia. Vivia mais ou menos modestamente em Paris – a cidade onde eu e boa parte de meus colegas na faculdade de comunicação, leitores de Barthes e Deleuze, gostaríamos de morar naquele tempo. Mas que ninguém se enganasse: era evidentemente um príncipe.
No conto O outro céu, que fecha "Todos os fogos o fogo", de 1964, o narrador vaga entre Buenos Aires e Paris, entre a chatice da vida de corretor da Bolsa ao lado da noiva Irma e as aventuras com a prostituta Josiane no mundo perigoso da Galerie Vivienne. Como ele faz isso? Como se fosse simples, "apenas empurrando com o ombro qualquer canto de ar". Os caminhos que estavam abertos ao personagem entre vida (corretor da Bolsa) e arte (boêmio e aventureiro) eram os mesmos que franqueavam o trânsito do autor entre o provincianismo sul-americano e o cosmopolitismo parisiense. Como ele fazia aquilo?
Com os mais finos recursos literários, mas a questão mais excitante era outra: em nome de quê? Não era preciso ser muito arguto para perceber que aquela Josiane de O outro céu era mais uma das mulheres misteriosas, elusivas e irresistíveis da galeria cortazariana, em que brilha acima de todas a Maga de "O jogo da amarelinha". Como Jorge Luis Borges, o outro gigante argentino que conseguiu dar o triplo salto mortal do provincianismo ao cosmopolitismo, Cortázar tem um ponto de vista profundamente masculino; em contraste com Borges, que ignora quase por completo as mulheres (ou mesmo qualquer ideia de sexo), dá a impressão de viver para elas.
Em sua famosa entrevista à "Paris Review", declarou-se um romântico: "Na verdade, tenho de tomar muito cuidado quando escrevo, porque muitas vezes eu poderia me deixar cair num… Não diria mau gosto, talvez não, mas um pouquinho na direção do roman­tismo exagerado". Não à toa, Cortázar é provavelmente o escritor mais indicado de toda a história para embalar casos de amor literários (Arte & Vida se misturando de novo, pois é), não sendo poucos, dizem, os namorados que se tratam de "cronópios" quando ninguém está olhando.
Folheando novamente o magnífico "Histórias de cronópios e de famas", de 1962, reencontro um continho que é uma espécie de profissão de fé a amarrar tudo isso. Chama-se Perda e recuperação do cabelo e recomenda um método insólito de "lutar contra o pragmatismo e a horrível tendência à consecução de fins úteis": arrancar um fio de cabelo, dar-lhe cuidadosamente um nó bem no meio, deixá-lo cair pelo ralo da pia e… dedicar as horas ou dias ou meses ou anos seguintes a recuperá-lo. Tudo vai depender do grau de dificuldade que o acaso apresentar, uma vez que o cabelo pode estar no sifão embaixo da pia, no encanamento do prédio, na imensa rede de esgoto da cidade – ou mesmo além.
A gratuidade fundamental do objetivo, como a do gesto estético, não torna menos séria, angustiada e apaixonante a busca pelo fio de cabelo com o nó no meio – apenas lhe adiciona uma dimensão vertiginosa ou onírica. Escrever para Cortázer é isso. Ele representa a literatura em seu estado mais desvairadamente lúdico. Acho que, no fim das contas, parei de ler suas histórias porque precisava tocar a vida, perseguir pragmaticamente alguns fins úteis, e não sou tão bom assim com passagens secretas que se abrem "apenas empurrando com o ombro qualquer canto de ar". No meu caso, é mais trabalhoso do que isso. Mas que elas existem, existem.