http://www.accaoanimal.com/site/content/view/317/133/
O meu cão ou o seu filho?
Dilemas éticos e a hierarquia do valor moral - Steven Best
Demasiadas vezes, os defensores dos direitos dos animais (DDA) são confrontados com a hipotética histeria do "dilema da casa a arder". Consiste em algo deste género: Se fosse apanhado numa casa a arder, a correr para a porta da rua para salvar a vida, e só tivesse tempo para salvar um cão num dos quartos ou um ser humano noutro, qual escolheria?
Invariavelmente, a pergunta é colocada com a intenção de encontrar inconsistências no esquema de valores ou empenhamento do DDA, de tal maneira que, apesar de toda a sua conversa sobre direitos dos animais ou igualdade entre espécies, salvariam mesmo assim o humano. No fundo, portanto, o DDA é como qualquer outra pessoa e um especista de coração. Quando confrontado com a pergunta da casa a arder, é-se condenado em qualquer das escolhas. Se se responder que se salvaria o humano, o interlocutor considera-o, confiante e contente, um hipócrita. Se se responder que se salvaria o cão, é-se retratado como vilão, descrente e misantropo desviado com valores confusos.
Um pseudo-escândalo abala a pátria
Colocaram-me esta questão recentemente, durante uma sessão de perguntas e respostas para uma apresentação que dei na Universidade do Iowa (UI). Em Novembro de 2004, a Animal Liberation Front (ALF) efectuou um audacioso raid aos laboratórios do Departamento de Psicologia. Destruíram computadores e equipamento laboratorial e salvaram 401 animais. Enquanto a ferida ainda estava aberta – com a audiência cheia de segurança, agentes à paisana e membros do Departamento de Psicologia, e durante a semana Martin Luther King – falei com pormenor substancial sobre as comparações entre o movimento do século XIX para a abolição da escravatura humana e o movimento do século XXI para a abolição da escravatura animal. Expandi o conceito de King sobre justiça e a sua aceitação da desobediência civil para a defesa dos direitos dos animais, ao mesmo tempo que apontei as limitações de qualquer enquadramento humanista, por mais lato que seja, que não expanda as noções de comunidade, justiça a direitos dos animais. Usando a ideia de King de que «uma injustiça em qualquer lado é uma injustiça em todo o lado», defendi o raid da ALF aos hediondos laboratórios da UI como sendo bom e um acto justo.
Apesar do Sturm und Drang[1] da ocasião, respondi entre parêntesis à questão da casa a arder durante o Q&A[2] – onde disse que salvaria o meu cão em vez de um humano estranho – isto titulou muitos jornais e blogs por toda a nação. O insípido jornal de estudantes The Daily Iowan noticiou que as observações do Professor Best foram tão «inflamadas que deixaram a audiência boquiaberta e em murmúrios». Brian "Brain Dead" O'Conner, um biólogo reformado e vivissector, cujo único sentido da vida senil é incendiar reproduções em palha de DDA no seu virulento e tóxico blog anti-direitos dos animais, comentou sagazmente que «a ética do Professor Best é a ética do "Eu Primeiro" – uma ética que não lhe requer que meça as consequências das suas acções contra nada que não lhe dê prazer pessoal. É a auto-indulgência do egocêntrico disfarçada de um nobre princípio moral».
Sai da frente, Ward Churchill[3], tens companhia. Aparentemente, neste país, não se favorece apenas a vida do animal não humano em detrimento de um animal humano em quaisquer circunstâncias, a não ser que se queira ser colocado na mesma galeria que pessoas de comportamentos sexuais desviantes, pedófilos e campeões do incesto. Lembro-me do falso furor provocado depois do 11 de Setembro quando Karen Davis, da United Poultry Concerns, disse que «é especista pensar que este evento foi uma tragédia maior do que a matança de vários milhões de galinhas que, sem dúvida, ocorreu também a 11 de Setembro, como ocorre em qualquer dia útil nos Estados Unidos». A analogia dela recebeu atenção internacional dos média e até lhe conseguiu uma entrevista no programa de rádio de Howard Stern. Similarmente, a People for the Ethical Treatment of Animals (PETA) causou sensação com a exposição "Holocausto no seu Prato", que muito sensatamente comparou o aprisionamento, sofrimento e morte de milhões de judeus em campos de concentração nazis a milhares de milhão de animais (10 mil milhões todos os anos só nos EUA) em campos de concentração de humanos – isto é, explorações industriais de animais. Fiquei estupefacto por tantas pessoas terem ficado escandalizadas perante as minhas observações, especialmente porque a substância do meu discurso era infinitamente mais radical e provocadora. Das minhas conversas casuais e sondagens não científicas realizadas com amigos, estudantes e diversas audiências, conclui que, até as pessoas que não apoiam os direitos dos animais, salvam o próprio cão ou gato em vez de um humano estranho na situação da casa a arder.
Claramente, para sequer responder a uma questão da casa a arder, temos que a desmontar de forma a especificar concretamente e em várias situações: exactamente quem é o cão e quem é o humano entre quem temos de escolher? A questão da casa a arder não pode ser respondida em abstracto: a resposta de cada um vai – ou pelo menos deveria – variar de acordo com o ser específico que ocupa os papéis abstractos de "cão" e "ser humano". Digo «deveria variar» sabendo que os especistas vão favorecer sempre o humano em detrimento do cão.
Um "especista" é alguém que a priori (literalmente, "antes de experimentar") favorece de forma preconceituosa os interesses do humano em detrimento de animais não humanos, de tal forma que os humanos contam sempre mais por pura virtude de pertencerem à espécie Homo sapiens. De uma maneira circular, os especistas argumentam, de facto, que os humanos contam mais por serem humanos e os animais contam menos por serem animais. Do seu ponto de vista preconceituoso, esquecem-se de perguntar e responder à pergunta real de porque é que a pertença a uma espécie é valorizada em detrimento da sua natureza existencial. O errado em infligir dor em seres vivos não depende da espécie a que pertencem, mas antes concentra-se na sua natureza enquanto vida senciente individual. Como observa Peter Singer, «dar preferência a uma vida simplesmente porque esse ser é membro da nossa espécie pôr-nos-ia na mesma posição de racistas que dão preferência àqueles que são membros da sua própria raça».
Por isso, tal como fiz com brevidade na Universidade do Iowa, deixem-me responder à questão da casa a arder adequadamente, não em abstracto, mas de várias maneiras concretas.
Vá, Fido, vamos!
Cenário #1: Enquanto corro da casa a arder para salvar a minha própria vida, tropeçando pelas escadas abaixo até à porta da rua, ouvindo o latir de um cão no quarto à minha esquerda e um grito humano no quarto à minha direita, à medida que o tecto cai à minha volta, fumo concentra-se em nuvens sufocantes e eu percebo que só posso salvar uma vida. Que devo fazer? Se o cão é o meu cão e o humano é-me completamente estranho, eu salvarei, em qualquer caso, o meu cão. Para mim, isto é óbvio, axiomático, de rigeur e incontroverso, algo que até os mais especistas e certamente "amantes dos animais" fariam. Mas, aparentemente, para muitos é chocante, irresponsável, horrífico e escandaloso. Eu salvarei o meu cão e não o humano porque o cão é família, um membro íntimo do meu mais íntimo círculo de relações, enquanto o humano é-me completamente estranho.
A minha escolha não é nem arbitrária nem errada – e eu nem sequer comecei a entrar em controvérsias. Qualquer pessoa forçada a escolher entre o seu pai, mãe, irmão, irmã ou amigo e um estranho escolheria, natural e correctamente, salvar o membro da sua própria família. Usando um raciocínio semelhante, poderei escolher um membro da minha comunidade local em detrimento de alguém que vivesse na Austrália. Se uma pessoa só pode salvar uma vida, é natural e intuitivo que escolha – compreendendo que este é ainda um mero princípio muito geral, que pode mudar sob diferentes condições – alguém que está relativamente "perto" em detrimento de alguém relativamente "longe". Chamarei a isto o princípio da proximidade existencial.
Tudo em família
Agora:
1) Se o princípio da proximidade existencial se mantiver, de forma geral, e
2) As pessoas relacionam-se frequentemente com os seus cães, gatos e outros animais domésticos como se se tratassem de membros da família, então
3) Segue-se que é perfeitamente aceitável e natural salvar o próprio cão (ou gato, coelho, etc.) em detrimento de um estranho.
Argumentar em favor de salvar o humano estranho em detrimento do membro da família canino é especista e arbitrário. Privilegia um ser em vez de outro simplesmente devido à sua pertença a uma espécie, sem explicar a absoluta relevância desse critério. Há duas falhas nesta abordagem: 1) não é discutível a razão pela qual a espécie é o critério moral decisivo para a tomada de uma decisão em dilemas deste género e 2) não vê que a proximidade sócio-familiar se sobrepõe legitimamente ao critério da espécie e que nós consideramos correctamente os nossos amados cães e gatos (tal como outros animais) como membros queridos das nossas famílias. De facto, as pessoas são frequentemente mais próximas dos seus animais do que dos membros da sua família. Passam, frequentemente, mais tempo com a sua família animal e – ao contrário da sua família humana – partilham até as suas camas com ela.
Para ser franco, eu salvaria o meu cão em detrimento de um, dez, oh, não sei quantos mais humanos estranhos, especialmente se fossem vis abusadores de animais – mais sobre isto abaixo. Deixe os especistas queixarem-se e zurrarem, leitor; sinta-se feliz por não ser o cão ou gato deles, porque eles vendê-lo-iam a um miserável bípede num piscar de olhos. Suspeito, contudo, que muitos destes fáceis humanistas e especistas são hipócritas que, na verdade, salvariam o seu cão em detrimento de um humano estranho, apesar dos seus preconceitos contra outros animais (como os milhares de animais terrestres e marinhos que acabam no desagradável cemitério dos seus estômagos) e a sua irracional aliança a uma espécie tão demente, perturbada e imerecedora como o Homo sapiens.
Penso que se a escolha fosse entre o próprio filho e cem estranhos, muitos ou a maior parte escolheriam salvar o próprio filho. Então o que pensa, Herr O'Conner? Isso também é comportamento "auto-indulgente" e "egocêntrico"? Quer que acredite que sacrificaria o seu filho ou filha por um estranho, que pode muito bem ser uma pessoa desagradável ou, céus!, um DDA? Qual é o problema do "filho" ser um cão? Família é família é família – não interessa se o membro da família tem quatro pernas ou duas, pele felpuda ou pele nua, se bebe de uma taça ou por um copo, ou se trata dos seus assuntos dentro ou fora de casa.
Mãe, pai, mana, céus!
Cenário #2: A situação pode mudar, contudo, se se for forçado a escolher entre membros da família humanos e não humanos, tal como o cão ou o pai, irmão ou filho. A maior parte – mas não todos – provavelmente escolheria a mãe ou o irmão em detrimento do cão, mesmo que escolhessem sempre o cão em detrimento de um humano estranho.
Cenário #3: Mas agora, e se se tivesse que escolher entre dois membros da família humanos? Salvaria a sua mãe ou o seu pai, irmão ou irmã, filho ou filha, pai ou filho, mãe ou irmã? Quem escolheria e porquê?
Utilitarismo e a qualidade de vida
Mudemos o cenário um pouco para torná-lo mais interessante e revelar mais acerca da natureza do valor moral e das considerações éticas.
Cenário #4: Suponhamos que, desta vez, o cão é um saudável cachorro que nunca conheci e que o humano é o meu idoso (85 anos de idade) vizinho do lado, nos últimos estádios de cancro. Quem devo ajudar? Mais uma vez, eu vou salvar o cão. O meu raciocínio não tem nada que ver com a espécie, mas antes com considerações utilitárias e a viabilidade da vida. O cachorro que não conheço tem uma vida cheia e rica pela frente, mas o humano que conheço tem a sua vida no passado e morrerá em breve. Suponham que o humano no quarto da direita é Terri Schiavo[4], que perdeu toda a actividade cerebral significativa e é mantido vivo apenas através de um tubo. Isto é, passo o trocadilho, um vegetal: Estou a sair da casa com o cão nos meus braços, mesmo que o cão tenha 20 anos e não tenha mais que um mês de vida. Mesmo assim, há mais qualidade de vida a ser encontrada no Fido do que em Terri. Se os papéis estivessem invertidos, contudo, e o cão estivesse doente e a morrer e o humano fosse jovem e saudável, eu salvaria o humano. Mas a minha escolha seria feita, outra vez, baseada em considerações sobre qualidade de vida (mesmo que rapidamente ou intuitivamente, eu conseguisse compreendê-las no calor do momento) e não em pertença a uma espécie.
Este é um apelo ao utilitarismo, uma doutrina filosófica que define a acção correcta como aquela que promove a maior quantidade de prazer ou felicidade para a maior quantidade de seres (sencientes), humanos ou animais. Admito livremente que os dois princípios que evoquei até agora – proximidade existencial e utilitarismo – podem facilmente contradizer-se. O meu desejo de salvar o meu cão em detrimento de cem humanos com base no facto do cão ser um membro da família, por exemplo, não maximiza claramente a quantidade de prazer ou felicidade para todos os seres envolvidos na minha decisão. Eu fico feliz, mas cem pessoas morrem e os seus amigos e familiares ficam abandonados e desconsolados. Se o estranho que sacrifiquei às chamas fosse um génio que tivesse a solução para a fome no mundo ou para a extinção das espécies, então, segundo o critério utilitário, eu claramente salvá-lo-ia em detrimento do meu cão. Posso facilmente justificar o salvamento do meu cão em detrimento de um Joe ou Josephine Schmo indistintos, mas há um certo ponto onde as escolhas baseadas na proximidade existencial se tornam difíceis de defender contra as considerações utilitárias e tornar-se-ão, de facto, egoístas.
Pessoalidade
Há uma terceira perspectiva ética, que penso ser extremamente importante analisar através do dilema da casa a arder, e que envolve o conceito de pessoalidade. Aqui bebo do conceito de "pessoa" de Peter Singer, assim como do conceito relacionado de "sujeito de uma vida" de Tom Regan. Embora Singer e Regan trabalhem a partir de enquadramentos teóricos incompatíveis (o utilitarismo de Singer vs. a abordagem deontológica dos direitos de Regan, que se foca no valor intrínseco de seres vivos e não nas consequências de uma acção), ambos rejeitam que o especista privilegie a priori humanos em detrimento de animais, enquanto permitem casos em que o valor da vida humana pesa mais do que o da vida de animais.
Tanto para Singer como para Regan, a questão eticamente relevante é não se um ser é humano ou não humano, mas antes se um ser é uma "pessoa" ou "sujeito de uma vida". Para contar como qualquer destes conceitos, um ser tem primeiro de ser senciente, ou seja, ter a capacidade de experienciar prazer e dor. Ser senciente é ter interesses profundos em evitar a dor e experienciar prazer. Faltando-lhes cérebros e sistemas nervosos, rochas e árvores não podem contar como seres com direitos, valor intrínseco e significância moral, ao contrário de sencientes humanos e animais não humanos. Acresce que, para contar como pessoa ou sujeito de uma vida, um ser tem de possuir qualidades mentais e psicológicas mais "avançadas", tais como consciência do eu, memória, desejos, preferências, uma vida emocional e compreensão do futuro. Para Singer, ostras e bivalves provavelmente não correspondem a estes critérios e ficam-se por uma zona moral cinzenta, que, ao contrário de vacas e porcos, permite que possam ser consumidos legitimamente como comida. Para desalento de Karen Davis, que estudou cuidadosamente a complexa inteligência de galinhas e perus, Singer sugeriu que tais aves podem não contar como pessoas. Para Davis, contudo, elas são pessoas em todos os sentidos do termo.
Assim que tornamos algo como a pessoalidade no factor relevante para decidir questões de ética e valor moral e abandonamos os apelos especistas ao Homo Sapiens, todo o jogo muda porque as regras são agora radicalmente diferentes. É que, quando mudamos o centro de gravidade de humanos para pessoas, vão haver muitos casos em que não humanos (como gatos, cães, golfinhos e chimpanzés) são pessoas e, controversamente, humanos (como crianças, os cerebralmente danificados, os comatosos e os que sofrem de estádios avançados de Alzheimer) são não-pessoas.
Em situações em que existe maior complexidade mental em pessoas não humanas, Singer favorece a vida de animais. Seguindo a lógica dos seus argumentos, Singer diz que seria mais ético usar humanos não-pessoas, como Terri Schiavo, para "investigação científica" e experiências do que pessoas não humanas, como um gato, cão ou chimpanzé. Mas, dada a escolha entre um animal e um adulto humano que "funcione normalmente", Singer favorece o humano em detrimento do animal devido às qualidades cognitivas mais avançadas do humano.
Singer sublinha que, se apelarmos apenas à linguagem e à razão para negarmos os direitos dos animais, então na mesma base, temos também de negar direitos a muitas categorias de seres humanos. Fetos, crianças, pacientes comatosos e alguns idosos e os severamente retardados não têm uma forma complexa de consciência e, portanto, não podem reivindicar direitos. Se um chimpanzé é mais esperto do que uma criança de três ou quatro anos e, certamente, tem muito mais consciência do que um humano "cognitivamente deficiente", porque não deixar os chimpanzés em paz e, em vez disso, confinar crianças humanas em jaulas e tentar induzir o vírus da SIDA nos seus corpos? De uma perspectiva ética não especista, esta é a coisa certa a fazer. E, certamente, de uma perspectiva científica, seria muito mais válido, uma vez que não se poria mais o problema de extrapolar dados de uma espécie para outra. Se rejeitarmos a validade de experimentar em crianças, comatosos, pacientes de Alzheimer e outras classes de humanos cognitivamente subdesenvolvidos ou deficientes, então, logicamente, teremos também de renunciar ao direito de experimentar em animais.
Do ponto de vista de Singer, existe um prémio moral sobre a auto-consciência e a complexidade mental a que se pode apelar para pesar diferentes valores, se necessário. Para Singer, «não é arbitrário defender que a vida de um ser auto-consciente, capaz de pensamento abstracto, de planeamento do futuro, de actos complexos de comunicação, etc. é mais valiosa do que a vida de um ser sem estas capacidades». É pior reduzir a vida de um humano do que de um peixe, existe menos sofrimento e perda porque o peixe tem uma vida mais curta e menor complexidade mental. Se aplicarmos o critério da pessoalidade a um cenário altamente artificial de escolha coerciva, eu escolheria o meu cão em detrimento da minha mãe morta cerebralmente, escolheria um golfinho em detrimento de um gato e um chimpanzé em detrimento de um cão.
Como Singer, Regan também privilegia a complexidade mental e favorecerá humanos em detrimento de animais em cenários de casa a arder ou naufrágio. Na verdade, Regan leva este conceito a extremos absurdos onde reivindica que atiraria um milhão de cães pela borda fora durante um naufrágio para salvar quatro vidas humanas. Em comparação com cães e outros animais, argumenta, os humanos têm um muito maior «número e variedade de oportunidades para satisfação» e, assim, o ponto de vista de Regan sobre direitos favorece uma pequena tribo de humanos em detrimento de uma vasta nação de cães. Regan oferece este argumento sem conhecimento das satisfações disponíveis para um cão e, dada a natureza stressante e competitiva da vida contemporânea, suspeito que um cão doméstico bem tratado tem muito mais satisfação na vida do que o seu guardião humano. Pode-se muito bem perguntar: não é preferível um cão feliz a um ser humano miserável cujo estilo de vida consumista é um fardo para o planeta? A fidelidade injustificada de Regan à vida humana mostra que, a certo nível, a utilidade é um critério de apelo. A que ponto – dez, cem, mil – não tenho a certeza, mas sinto que há mais valor nas vidas de um milhão de cães do que na de qualquer pessoa. Pessoalmente, saltaria do barco e afogar-me-ia para salvar um milhão de cães da morte.
Deixem cair os vossos homens de palha
Críticos dos direitos dos animais anotem. É uma crua caricatura da filosofia dos direitos dos animais reivindicar que os DDA pensam não haver diferença entre animais humanos e não humanos. Em todos os aspectos, o Homo sapiens é o ser mais criativo e inteligente do planeta; ao contrário de animais, os seres humanos podem escrever poesia, compor sonatas e desenhar naves espaciais. Se há um verdadeiro dilema ético tal que se tem de escolher entre uma vida humana viável e um animal, filósofos como Singer e Regan privilegiam sempre a existência humana e, em contradição com os pontos de vista abolicionistas e anti-vivisseccionistas de Regan, Singer defenderá a experimentação em animais sempre que exista potencial para favorecer os interesses humanos.
Dada a sua aliança com a libertação animal e os direitos dos animais, contudo, enfatizam que existem poucos casos bona fide em que os interesses humanos e animais entrem em conflito, de tal maneira que o prazer e vida de animais possa ser correctamente sacrificado pelos humanos. Explorar animais pelo seu pêlo, carne, fluidos corporais e valor de entretenimento não são exemplos de tais casos, uma vez que não existe necessidade ou razão que compila à exploração de vidas animais por interesses humanos. Os prazeres que humanos obtêm de comer carne, por exemplo, são satisfações triviais que não justificam de modo algum o aprisionamento, sofrimento, tortura e morte violenta de milhares de milhões de animais.
O meu objectivo é aqui mostrar que o reformista Singer e o proponente dos direitos dos animais Regan são exemplos de como filósofos e outros não fazem convergir as diferenças entre animais humanos e não humanos. Quando Ingrid Newkirk diz que «um rato é um cão é um rapaz», ela não está a fazer entrar em colapso todas as diferenças entre eles; está antes a enfatizar que todos, igualmente, são mamíferos sencientes que partilham as capacidades de prazer e dor, de vidas agradáveis ou horríveis. Para Singer, a "igualdade de interesses" significa que tanto humanos como animais têm igualmente interesses, têm preocupações, necessidades e preferências. Uma vez que isso seja reconhecido, Singer avaliará a natureza específica de humanos e animais, que são parte de um potencial dilema moral, e decidirá de acordo com a substância da reivindicação humana sobre animais e os diferentes graus de pessoalidade. Para Regan, humanos e animais são iguais em termos de serem sujeitos sencientes de uma vida, que tem valores intrínsecos e direitos; apenas na mais extraordinária situação – não a vivissecção, mas um barco salva-vidas a afundar-se – é que Regan permite que os interesses humanos se sobreponham aos interesses animais.
A questão não é existirem diferenças ou não entre humanos e animais; claramente, existem. A questão é se estas diferenças são moralmente significativas. Quando, se é que nalgum momento, é que o mero facto da complexidade intelectual humana justifica a utilização de animais para os nossos alegados benefícios e caprichos egoístas? E quando é que os interesses humanos e animais realmente chocam de uma forma que os seres humanos tenham um interesse substantivo em jogo, em que a única forma possível de o concretizar é causar sofrimento e/ou a morte de animais?
A mudança Gestalt cujo tempo chegou: a perspectiva biocêntrica
Cenário #5: Não interessa como chegaram lá; suponha que estava uma foca bebé num quarto e um caçador de focas no outro. Não só salvaria a foca do bárbaro que ganha a vida a bater nas cabeças desses bebés bonitos e a esfolá-los vivos, eu salvaria a foca em detrimento de mil milhões de bastardos como ele. Similarmente, eu atiraria um número infinito de cretinos tipo Ted Nugent[5] de uma falésia abaixo para salvar um veado, alce, urso ou qualquer outro animal que eles matam por prazer. Fá-lo-ia para salvar uma barata, uma pulga ou uma carraça. Ou uma erva. O planeta é um lugar melhor sem esses sádicos, que matam animais por prazer ou lucro.
Cenário #6: Eu também escolheria um membro de uma espécie em extinção (como a pantera da Florida, o rinoceronte negro ou o gorila de costas prateadas) em detrimento de um humano estranho, a menos que, de novo, esta pessoa fosse tão importante para o planeta que ele(a) pudesse fazer coisas dramáticas para o ajudar. Para qualquer pessoa que seja rápida no descortinar de mais provas da "máscara egocêntrica", eu daria de bom grado a minha vida para salvar uma espécie ameaçada.
Eu adopto uma perspectiva centrada na terra ("biocentrismo") em detrimento de uma perspectiva centrada nos humanos ("antropocentrismo"), de tal forma que vejo as necessidades da terra e da biodiversidade como mais importantes do que a vida de qualquer ser humano único, incluindo-me a mim. É extremamente raro que um membro do Homo Sapiens valorize as necessidade da terra acima de tudo, mas podem-se encontrar valores biocêntricos na ecologia profunda, A Terra Primeiro!, e eco-guerreiros como Paul Watson.
Uma vez ouvi alguém dizer que exterminaria cada um dos chimpanzés que restam no planeta para salvar um único humano da SIDA. Este é o grau de perversidade moral e trai a lógica insana do antropocentrismo, que sobrevaloriza excessivamente o valor da vida humana individual no grande cenário da evolução e biodiversidade.
A mudança para uma perspectiva biocêntrica deveria tornar a maior parte dos humanos humildes. Do ponto de vista da terra – de Gaia – a larva, a borboleta, a abelha e o escaravelho são muito mais importantes para as suas necessidades e futuro do que a inchada população de mais de seis mil milhões de seres humanos. Porque, enquanto as larvas enriquecem o solo, as borboletas e as abelhas polinizam as flores e os escaravelhos espalham nutrientes pelas florestas tropicais, o Homo sapiens ataca o corpo da terra como se fosse um vírus mortal ou cancro.
O eco-humanista Murray Bookchin pensa que o planeta estaria vazio de interesse não fossem os seres humanos. Eu, por outro lado, acredito que o planeta estaria muito melhor se a espécie hominídea denominada Homo não tivesse evoluído para o locustídeo violento e destrutivo que é, uma espécie engordada pela guerra, genocídio e dizimação ambiental, aniquilação de animais e economias descontroladas, crescimento populacional e estilos de vida.
Os humanos têm o direito de viver no planeta tal como qualquer outro animal. Mas, a não ser que os humanos – e é claro que me refiro principalmente àqueles que vivem em economias nórdicas avançadas, mas também àquelas populações em rápida modernização da China e Índia – consigam controlar-se e aprendam a reduzir os seus números, a simplificar os seus estilos de vida e a harmonizar a sua existência com as necessidades do planeta, eu não choraria muitas lágrimas pela sua destruição – que chegará, mais tarde ou mais cedo: de repente ou com doloroso prolongamento, acabando com um bang ou um queixume.
Preferiria que os elefantes de novo povoassem livremente as savanas africanas, que os chimpanzés enchessem as florestas tropicais de brincalhões pios, que as florestas tropicais, mais uma vez, inchassem majestosamente, que os rios e oceanos se tornassem limpos e cheios de golfinhos, baleias e peixes. Preferiria que a regeneração da terra transpirasse a ter os humanos a devorar continuamente e a destruir o planeta com os seus jipes, super-auto-estradas, propagação urbana, subúrbios, famílias inchadas, adições a fast food, apetites tipo Super Size Me[6], arrogância e alienação e gordos e grotescos rabos.
Ponderai o vosso prato
Eu tenho pensamentos conflituosos acerca do dilema da casa a arder. Por um lado, é um instrumento útil para clarificar valores éticos. A pertença a uma espécie pode ser relevante para dilemas morais, mas não de uma forma a priori que favoreça sempre os animais humanos em favor dos animais não humanos. Outros factores são mais decisivos para escolhas morais, tais como a proximidade existencial e pessoalidade.
Por outro lado, penso que o cenário da casa a arder é uma questão vazia, estéril e hipotética que é completamente inútil e levantada engenhosamente por insípidos palermas que nada fazem para ajudar o planeta, mas censuram os que o fazem. A sua natureza académica distrai das demasiado reais questões que todas as pessoas enfrentam no que respeita a como viver uma vida que não cause mal a animais ou à terra.
As questões reais que as pessoas têm de enfrentar não são sobre o que fariam se se vissem na situação da casa arder com escolhas a fazer e vidas para salvar, mas que tipo de roupas devem usar, que tipo de comida devem ter nos seus pratos, que tipo de produtos devem usar e que tipo de transporte devem escolher.
Quando me perguntarem sobre a questão da casa a arder novamente, no futuro, penso que responderei simplesmente: «Quando estiver numa casa a arder e tiver que escolher entre um animal e um humano, farei com que te chegue a resposta. Entretanto, tenho sérias escolhas éticas a fazer todos os dias».
Traduzido de My Dog or Your Child? Ethical Dilemmas and the Hierarchy of Moral Value
Fonte: http://www.drstevebest.org/
[1] N. da T. - Sturm und Drang: movimento literário alemão do século XVIII caracterizado pela ênfase na subjectividade pessoal, pela intensidade com que desenvolveu o tema da genialidade dos jovens na rebelião contra os padrões aceites e pelo entusiasmo dos autores pela natureza. O principal autor desta corrente foi Goethe.
[2] N. da T. – Q&A – Abreviatura inglesa para "Questions and Answers", ou seja, "Perguntas e Respostas".
[3] Ward LeRoy Churchill – activista norte-americano dos direitos dos índios nativos do continente, escritor e académico.
[4] N. da T. – Terry Schiavo era uma cidadã norte-americana, que sofreu danos cerebrais irreversíveis e que, até à data da sua morte, em Março de 2005, foi um símbolo da luta a favor da eutanásia. A sua morte acabou por ser provocada pelos próprios médicos que, durante mais de dez anos, fizeram com que o seu corpo se mantivesse vivo através de máquinas.
[5] N. da T. – Ted Nugent é um dos mais proeminentes caçadores norte-americanos. É também músico. Defende a caça como forma de conservação da natureza e já dispõe mesmo de um reality show, no qual a caça é sublinhada como uma arte da sobrevivência.
[6] N. da T. – Super Size Me é um documentário da autoria de Morgan Spurlock que se centra no papel da fast food na dieta alimentar dos norte-americanos. O próprio realizador submete-se a uma alimentação exclusivamente composta pelo menu da McDonald's, tentando determinar os seus efeitos e chegando à conclusão que pode morrer se se mantiver naquele caminho.