Conta-nos Alexandre Soljenitsyne que levou algum tempo a tentar perceber esta frase enigmática que, um dia, Dostoïevski deixou cair: «A beleza salvará o mundo». Interpretou-a finalmente como querendo significar que a beleza da arte, sobretudo da literatura, acabará por fascinar o mundo e convencê-lo da necessidade de reflectir e de pôr em prática a profunda defesa dos valores da dignidade humana, sobretudo da verdade e da justiça, que os grandes autores sempre deixam inscrita no seu legado literário.
Recentemente, li a notícia de que as universidades americanas, conscientes do erro cometido por darem a primazia às tecnologias e à investigação do universo material, iam voltar ao estudo do humanismo, privilegiando o conhecimento da filosofia e da literatura.
Se reflectirmos um pouco sobre o que é hoje a civilização ocidental, não será difícil chegar à conclusão do modo como a realidade material submerge a realidade espiritual.
A civilização do prazer e do lucro sobrepõe-se ao sacrifício de lutar contra as mentiras e os engodos de fanáticos e de oportunistas.
Soljenitsyne, que sofreu no corpo e na alma os horrores das massificações e das ilusões da luta de classes que, criando falsas utopias arrasaram, e continuam a arrasar, milhões de seres, preveniu-nos, com lucidez, contra os novos monstros que se transformam facilmente em degradação humana, genocídios, ditaduras cruéis, anulação do indivíduo.
Roger Martin du Gard publicou uma obra, «O Verão de 1914», em que alertava para a atmosfera angustiante que se viveu na Europa antes da mobilização para a 1.ª Grande Guerra Mundial, face à fraqueza dos governos de então, às suas hesitações, às suas indiscrições, às suas ambições inconfessáveis com a cumplicidade passiva das massas que acabariam por sofrer na pele os horrores que se seguiram (nove milhões de mortos e dez milhões de estropiados).
Mas, o homem, que continuou sem meditar a literatura, copiou os mesmos erros e desencadeou a 2.ª Guerra Mundial, com consequências mais gravosas ainda, teimando, no presente, em alimentar outros horrores um pouco por todo o mundo.
E continuamos sem ler nem apreciar a beleza da arte.
Assistimos à cavalgada do materialismo e à degradação cada vez mais abjecta da humanidade, com seu cortejo de obscenidades. Basta-nos referir o que se passa nas nossas televisões com as telenovelas e seus conteúdos mentirosos e outros programas ridículos de má língua, noticiários (!) incluídos, para percebermos o que é a concessão ao que de mais baixo e vil existe no homem desde o tempo das cavernas e que leva as novas gerações aos himalaias do gozo alarve.
Num mundo sem literatura, não me espanta que continuemos indiferentes aos vários horrores que se vão repetindo, de que, o exemplo mais vivo e recente, é o do Zimbabwe, perante a cobardia, a indiferença, a fraqueza e a inoperância de governos incompetentes, ignorantes da história, insensíveis aos valores humanos, hesitantes na defesa da dignidade humana.
Um mundo sem beleza é um mundo perdido, sem verdade nem justiça nem sentido. Alimentar a espiritualidade é libertar o Homem.
Resta-nos a esperança de que um próximo pesadelo acorde os políticos e os alerte para a urgente necessidade de reintroduzir nas escolas o estudo dos autores universais para que se cumpram as palavras de Dostoïevski e «a beleza acabe por salvar o mundo», destruindo a cobardia e o medo.
'Dostoievski'
14x21cm - Nankin e guache s/papel