Para: Miguel Fernandez
Assunto: Read a new story from MiguelFernandez6
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Texto de Fernão Lara Mesquita publicado no jornal O Estado de S. Paulo São Paulo comemorou neste Julho passado o 82.º aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932, que muito pouca gente, no Estado e no resto do Brasil, sabe o que foi. É impróprio, aliás, usar verbos no passado para tratar deste assunto, pois a luta de 1932, que começara pelo menos 50 anos antes com o Movimento Abolicionista, que desaguou na República e se confunde com a história do jornal O Estado de S. Paulo, é exatamente a mesma de hoje. Gira em torno da seguinte pergunta: onde se quer instalar a sociedade brasileira emancipada, no campo da civilização ou no da barbárie? No Estado de Direito, com a lei igual para todos, ou nas variações do caudilhismo populista, onde fala quem pode e obedece quem tem juízo? Numa meritocracia, em que só a educação e a dedicação no trabalho legitimam a diferença, ou no sistema em que a cooptação e a cumplicidade com a corrupção são os únicos caminhos para o poder e para a afluência? O Movimento Abolicionista é o primeiro na história do Brasil a surgir nas ruas, não nos palácios, e a tomar o país inteiro numa avassaladora mobilização cívica. Nasceu sob inspiração direta da Revolução Americana. Muitos de seus principais líderes brancos e negros frequentaram as mesmas "lojas maçônicas" lá, nos Estados Unidos, onde a elite do Iluminismo fugida do absolutismo monárquico europeu, regime sob o qual viviam o Brasil e o resto do mundo de então, iniciou o debate que resultaria no desenho das instituições da democracia moderna. Tratava-se de uma humanidade escaldada por 2 mil anos dormindo sob o risco de sua majestade acordar de mau humor e mandar torturá-la até a morte sem ter de dar explicações a ninguém. Para garantir que nunca mais fosse assim, aqueles conspiradores estabeleceram os princípios fundamentais da democracia que até hoje não se instalou por aqui: o império incontestável da lei, inclusive e principalmente sobre os governantes; a vontade popular, democraticamente aferida, como única fonte de legitimação dessa lei, e o mérito no trabalho como única fonte de legitimação do poder econômico; a descentralização do poder para garantir a fiscalização mais direta possível dos representados sobre os representantes, concentrando nos municípios todas as decisões e os serviços públicos que pudessem ser prestados no âmbito deles; nos Estados, apenas as que se referissem aos assuntos que envolvessem mais de um município; e na União, só as que não pudessem ser resolvidos por essas duas instâncias, mais as relações internacionais. Para reduzir ainda mais o espaço para que as tentações do mando não produzissem os efeitos que sempre produzem no caráter dos homens, determinou-se que cada uma dessas instâncias de governo fosse dividida em três Poderes autônomos e independentes entre si, uns encarregados de fiscalizar os atos dos outros. Não foi à toa, portanto, que os brasileiros oprimidos que testemunharam esse verdadeiro milagre se tivessem encantado a ponto de dedicar sua vida a fazê-lo acontecer também no Brasil. Foi em nome desses princípios que nasceu a República. E foi para preservá-los que foram feitas a Revolução de 1930, a Revolução de 1932, a redemocratização de 1945, o contragolpe de 1964 e a redemocratização de 1985. Getúlio traiu, como Lula, a bandeira da "ética na política", que levou os dois ao poder, em 1930 e em 2002. Getúlio, adiando a convocação de uma Constituinte e nomeando títeres como governadores dos Estados até que São Paulo se levantasse contra a sua ditadura não declarada, em 1932; Lula, aliando-se a todos os "carcomidos" da política, que se elegeu atacando, para se perenizar no poder. Foram 87 dias de uma guerra desigual contra os Exércitos da União. São Paulo foi derrotado militarmente, mas teve uma vitória moral tão indiscutível que Getúlio, depois de devolver o governo do Estado a lideranças paulistas (na pessoa de Armando Salles de Oliveira), sentiu-se constrangido a convocar finalmente a Constituinte que deu ao Brasil, em 1934, a única Constituição verdadeiramente democrática que o país teve. Tão democrática que o caudilho não conseguiu conviver com ela e "fechou" o país, em 1937, impondo a sua própria lei e reinstalando a ditadura. |
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"Em um mundo tão acelerado, (…) você consegue se desligar? (…) Acho que a profundidade de atenção exigida por um livro é muito significativa e uma alternativa ao nosso modo de vida."
Tom Rachman, escritor anglo-canadense, no jornal O Globo; em seu novo romance, The Rise & Fall of the Great Powers, a protagonista prefere viver desconectada do universo digital |
Bem, existe ao menos uma vítima do Ebola que está agora nos EUA. É um médico que contraiu a doença na África e foi trazido para o hospital da Emory University para tratamento. Uma outra paciente chegará na semana que vem.
O tom da reportagem é um pouco assustador. Não por criar pânico, ao contrário: mas por tanto insistir que não há perigo algum de contágio, que as instalações do hospital são super-modernas, que o isolamento dos pacientes será total, que o contágio seria difícil pois só acontece na fase terminal 'quando o paciente não se mexe muito', etc etc. Enfim, tanto insistem que "não é nada" que terminei me apavorando. Seria o famoso plano illuminati para espalhar uma doença contagiosa a nível mundial, reduzindo em 90% a população mundial? Não, não creio. Porém, as razões para trazerem os pacientes para os EUA talvez não tenham sido bem pensadas, já que o risco de algo dar errado sempre existe. De qualquer modo, na era da globalização, não é preciso trazer pacientes em um avião militar. Turistas ou imigrantes de Serra Leoa podem trazer o vírus para qualquer país do mundo em uma viagem, repetindo o roteiro do filme "Epidemia". Uma das dúvidas é a seguinte: porque tantas doenças, antes desconhecidas, surgiram nos últimos tempos? Aids, Ebola, SARS não existiam antes das últimas décadas. Seria a mera mutação de vírus? Seria o crescimento populacional excessivo, e a convivência em mega-cidades? Ou seria algo mais. Sorte tem o brasileiro, que não precisa se preocupar: "Risco de Ebola propagar-se para o Brasil é baixo". É o Ministério de Saúde que "agarânti"! |
I Odeie o conforto. Se estiver concentrado demais na história que está escrevendo, ligue a TV, entre num bate-papo virtual. Caso as palavras continuem a lhe jorrar dos dedos, ponha uma música, desligue o ar condicionado, abra a janela para o berreiro de freios, buzinas e motores. Sinta-se incomodado: retarde ao limite do desastre – ou mesmo, havendo disposição e necessidade para tanto, além dele – a hora de ir ao banheiro. Morra de sede, chegue a passar fome. Brigue com a sua mãe. Mande confeccionar para sua cadeira de escritório XTZO-3000 (com amortecedor inteligente) um magnífico assento de tachinhas medievais. Boicote-se: se escrever umas tantas páginas-telas que lhe agradem em particular, dê um jeito de perdê-las, negando-se como um tonto a salvar o arquivo ao fechá-lo. E então esprema a memória para reproduzi-las igualzinho, vírgula a vírgula, exceto por uma palavra que já não achará mais e cuja ausência, se tudo der certo, vai torturá-lo por horas e horas de trabalho ou trabalho nenhum, pois não se pode chamar de trabalho o tumulto de pensamento que o tomará então, o céu a estridular como se fosse partir ao meio e o computador berrando mais do que a cidade e a TV juntas jamais sonharam berrar. Nesse momento, se as instruções tiverem sido seguidas corretamente, a linguagem estará passando por você depressa demais para ser captada, zunindo, turbilhão de luz no hiperespaço. Você terá se infiltrado, como um espião ou um vírus, no coração da máquina que move um mundo de palavras sem tempo de fazer sentido. É horrível. Avance a mão, colha uma ao léu, e então comece. II Nunca aceite conselhos, com exceção deste: nunca aceite conselhos. A abertura da exceção destina-se a evitar um curto-circuito lógico que precipitaria o pensamento em abismos semelhantes ao do célebre "paradoxo do mentiroso" de Epimênides ou Eubulides, aquele que diz: "Estou mentindo agora". Caso aceite este conselho, você vai descobrir que ter aberto tal exceção equivalerá a reconhecer – questão de honestidade intelectual – o princípio de que conselhos podem ser úteis e que, sendo assim, a determinação de nunca aceitá-los é uma estupidez. Um caminho que parece menos traumático é recusar o conselho de nunca aceitar conselhos e permanecer livre para aceitar os conselhos que quiser, repudiando os demais. No entanto, a arbitrariedade dessa discriminação, confundindo-lhe a alma, tenderá a encaminhá-lo para a aceitação do conselho bom ao lado do ruim, qualquer um, na verdade, menos este, o de nunca aceitar conselhos. Aceite todos, portanto, inclusive este, eis o que seria meu principal conselho, se eu não estivesse mentindo agora. III Esqueça o famoso conselho: um escritor não precisa escrever sobre o que "conhece bem". Quase todo mundo, ao escrever sobre o que conhece bem, produz platitudes que o leitor também conhece bem, antes mesmo de ler. Invente, se der na veneta, um mundo pré-colombiano inteiro, mapas e tudo, com nórdicos e ibéricos que a história não registrou se imiscuindo entre os incas, onde uma princesa chamada Aya, cujo amor pelo louro Thür foi condenado por seu pai, o imperador Tapa-Quichuchu, entra nua e magnífica numa banheira de enguias elétricas enquanto na rua o povo comemora a chegada de um novo ciclo lunar fornicando desavergonhadamente pelos cantos, ao som de trompas de chifre e tambores de lhama. Então, no meio daquela zorra, pare um minuto e dê a alguém, um personagem qualquer, um traço seu: a dor de cabeça da noite passada, por exemplo. Um jeito de andar ou falar. Em histórias menos épicas, pode ser a preferência por uma marca de cerveja. Basta: essa gota de verdade pessoal, essa mísera pincelada no formidável painel, num fenômeno alquímico ainda pouco elucidado, torna de repente lancinante o suicídio da bela Aya, imprescindíveis as enguias, trompas, bacanal, América pré-colombiana de araque ou o que quer que se urda com razoável esmero e que por obra daquele detalhe pífio, daquela gota de experiência, vibra agora tão vivo quanto a vida que temos diante do nariz, só que mais excitante. Ou pelo menos é nesse sentido que você encaminha suas preces. IV Busque no ritmo das pedrinhas portuguesas a exata ondulação de um capítulo. Abra o dicionário ao acaso para encontrar o adjetivo preciso. Conte o número de carros azuis que avista da janela no prazo de cinco horas para decidir quantas vezes um personagem deprimido tenta se matar antes de ter sucesso. Desventre croissants para estudar camadas de sentido. Aposte contra a máquina no futebol do Playstation o destino – ganhou, apogeu, Fitzgerald; perdeu, decadência, Faulkner – de um protagonista ególatra, seja astro do rock ou imperador da borracha na Manaus do século XIX. Estude doutamente a borra do café, procure ancestrais desígnios pétreos nas dobras do lençol pós-insônia, contemple o ar invisível, sonde as próprias fezes. Faça cada dia de chuva puxar uma pétala do malmequer, e assim, passados sete meses, decida o desenlace romântico de herói e mocinha. Para questões de estilo, prefira roletas e dados. V Não precisa ser a primeira preocupação do escritor ao se sentar diante do suporte físico ou etéreo em que gravará suas palavras, mas em algum momento do processo é recomendável que ele tenha em mente a questão do texto que se fagocita contra o texto que se degusta aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio. A oposição estabelecida por Andrônico de Rodes, o primeiro editor de Aristóteles, e ampliada por diversos pensadores, dos quais Montaigne não será um dos menos ilustres, vive desde o Modernismo uma crise de cognição. Hoje, quando se refere à questão do texto que se fagocita contra o texto que se degusta aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio, o crítico erudito tende a pensá-los como dois países autônomos. Talvez influenciado pela famosa oposição entre intelecto ativo e intelecto passivo proposta pelo Estagirita que Andrônico seguia, imagina cada um desses territórios entregue a seus próprios habitantes, com autores de livros para fagocitar atendendo à demanda de leitores fagocitadores, e produtores de carpaccio à dos apreciadores de fatias finas. Equilíbrio que não deixa de ser precário, como atestam as guerras diplomáticas entre as nações antípodas, mas é, de todo modo, reconfortante. Se retomarmos o fragmento original, porém, veremos que algo importante se perdeu desde a intuição fulgurante do obscuro peripatético: "Histórias comidas com vagar alimentam o intelecto, histórias engolidas de uma vez alimentam a alma". Ora, o que se perdeu é algo que, ao lançar na arena uma oposição de outro nível epistemológico e moral, descola o humilde Andrônico do campo aristotélico da moderação: o fato bastante óbvio de que o bom leitor (fiquemos em bom, para não invocar um ideal platônico) precisa nutrir tanto cabeça quanto alma, e portanto não se satisfará com uma coisa só. É provável que se torne então um leitor voraz e eclético, do tipo que intercala livros para fagocitar com livros para degustar aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio. Mas também pode ser que, não contente com tal arranjo, passe a procurar escritores que revezem como ele os dois estilos, brincando de gangorra com carpaccios e fagocitoses, numa alternância que será o motor da própria escrita, às vezes com bruscas inversões dentro da mesma frase ou, pensando bem, da mesma palavra. O leitor verá que esses escritores não são fáceis de encontrar, mas procurá-los é preciso. O que você tem a fazer é lutar com todas as forças para ser um deles. VI Não tenha preguiça de reescrever. O escritor que não reescreve o que acabou de escrever, mesmo que por pura mania, mesmo que para deixar o texto indiscutivelmente pior, não merece ser chamado de escritor. Será, no máximo, um excretor a sujar de palavras fisiológicas em estado bruto um mundo que não precisa de sua contribuição para se assemelhar a um aterro sanitário de símbolos. Se escrever dez linhas, reescreva-as dez vezes em dez horas, e mais dez vezes a cada dez horas dos dez dias seguintes: corte, amplie, pregue, serre, lixe, solde, cole, mude tempos verbais e a ordem dos parágrafos, exercite a sinonímia e a intolerância. (Este conselho, por exemplo, foi reescrito ao longo de nove meses de trabalho diário. Em sua primeira versão, dizia: nunca reescreva o que acabou de escrever.) E caso ocorra a circunstância nada improvável de retornar nesse processo de edição a um texto muito semelhante ao original, ou mesmo idêntico a ele, saiba que a sensação de tempo perdido será uma ilusão e que o fruto da reescritura, como o Quixote de Pierre Menard, terá por trás das mesmas palavras uma densidade incomparavelmente superior. Claro que também é preciso reconhecer o momento de parar de reescrever, aquele ponto a partir do qual, como nas cirurgias plásticas em série, qualquer nova mexida só pode resultar em desastre, mas isso não é tão difícil: ele costuma vir acompanhado do impulso de golpear repetidamente o cristal líquido com o teclado para ver qual quebra primeiro. VII Não perca um minuto discutindo com quem prega a morte da narrativa. Evidentemente, o que esse cidadão está tentando fazer é criar uma – sim! – narrativa, aliás ingênua e batida, em que ele próprio é ao mesmo tempo o bandido que mata a velha dama aristocrática chamada Literatura e o mocinho que desvenda o crime, trazendo a boa nova de um futuro em que os narradores serão substituídos por… filósofos da linguagem? Se é verdade que vivemos um tempo de inflação narrativa em que a vida privada se vê transformada em "historinha" de forma instantânea nas redes sociais, a única resposta que a isso pode dar a literatura, arte narrativa por excelência, é narrar melhor. Narrar a narrativa, narrar o processo que fez tudo virar narrativa. Ou criar uma narrativa que dê um jeito de ser tão focada que brilhe em meio à pasta amorfa geral, atingindo o frescor pelo paradoxo da evocação de uma certa luz perdida. Por definição, nunca se pode dizer de onde virá o novo. Mesmo porque a tal inflação não começou há cinco anos, nem há trinta. O modernismo é, entre outras coisas, uma réplica artística à trivialização das histórias promovida por imprensa, rádio e cinema no início do século 20. Parece inegável que a crise se aprofundou e exige novas respostas, mas supor que estas proscreverão sumariamente a pulsão narrativa, mãe de poesia e prosa, é um erro tão simplório que parar para discuti-lo só atrasa a vida – que, como se sabe, é curta. Deixe o cara falando sozinho e vá escrever aquele conto. VIII Cultive um amuleto para os momentos de desespero. Pode ser Al Pacino perguntando a Diane Keaton em O poderoso chefão: "Quem está sendo ingênuo, Kay?" (Quem está sendo ridículo, cara?) Pode ser qualquer coisa, a memória do ar frio da madrugada entrando em seus pulmões numa manhã de pescaria na infância, um retrato da sua filha sorrindo com a boca sem dentes toda suja de feijão quando tinha um ano, uma estrofe de Bandeira, um labirinto de Escher, uma foto de Gautherot, qualquer objeto material ou imaterial que tenha algo de imantado e permanente e que, invocado como último recurso, agarrado na vertigem do sorvedouro como as sobrancelhas de Capitu eram agarradas por Bentinho em dias de ressaca, o impeça de cair no ralo que cedo ou tarde tenta nos tragar a todos, aquela contabilidade avara de elogios e críticas e gentilezas e esnobadas e alianças e hostilidades e rancores guardados na geladeira em tupperwares etiquetados, nomes e datas, vinganças agendadas, o ressentimento justificado, o ressentimento injustificado – o ressentimento, só. Quando a corredeira dos egos escoiceantes ameaçar transformá-lo num idiota, num paspalhão, agarre seu amuleto com todas as forças e saia em diagonal, dançando um maxixe com ar distraído, para não ter que admitir nem para si mesmo que disso depende sua salvação. IX Pense nas palavras como amantes jogo-duro, seres neuróticos e esquivos que, para cada noite de prazer desbragado a apontar o infinito da posse plena, destinam ao insensato que com elas se envolve trezentas noites de gagueira e frio e fome não saciada, de cabelos puxados no meio do deserto no mais atroz desespero. Desconfie das palavras. Se declaram amor, exija mais, cobre provas, invente caprichos. Se lhe dão as costas, vá atrás. Sendo preciso chegar a tanto, implore, humilhe-se, mas guarde uma secreta porção de orgulho ferido: ela lhe será útil quando, após a próxima reconciliação, vocês brigarem de novo. Se desconfiar que as palavras lhe são infiéis, é porque são mesmo. Entregam-se a qualquer um que as saiba afagar, as vagabundas: o que são os clássicos da literatura universal senão os autos de seu ancestral pendor pela galinhagem? É só você que elas desprezam. Diante de suas cantadas subitamente ineptas, reviram os olhinhos, tingem os lábios de frio desdém. Revirar-lhes os olhinhos de prazer, morder seus lábios gulosos será então, para sempre, a ideia fixa do escritor, o padrão-ouro de sua vida. Coitado. Se tiver habilidade e sorte, conseguirá ter com as palavras uns poucos momentos memoráveis, o que é ótimo, contanto que não lhe suba à cabeça. É importante não esquecer que elas sempre vencem no fim, sempre esnobam, vão se entregar aos outros, ao mundo, a ninguém, deixando atrás de si, como uma cauda de cometa, o mudo turbilhão de indiferença que é a herança de todos os seus amantes. X Desista se for capaz. Pode ser que, após ponderar os conselhos anteriores e testá-los em exercícios práticos diários, angustiosos e inconclusivos, você encontre no fundo da última gaveta da alma uma migalha de sanidade e vislumbre, ainda que por meio segundo, a possibilidade de uma vida de plenitude imediata em que escrever não seja necessário, mais até do que isso, em que escrever seja tão inconveniente quanto a música de mau gosto que vaza pela parede do vizinho no meio da noite. Nesse caso, é altamente recomendável agarrar a miragem e trabalhar dia e noite para fazer da fresta um caminho, da centelha uma rota de fuga para um mundo de coisas que existem antes das palavras ou à margem delas: amores sem versos declaratórios de impossível originalidade, luares desprovidos de citações, equações sonoras de Thelonious Monk fruídas com a paz resignada dos que não buscam tradução para o intraduzível. Se for bem sucedido, você verá que esses e outros benefícios superam com folga aquilo que terá deixado para trás: a luta corporal contra o vento, as admirações minadas de ódio, as recompensas risíveis, a certeza do fracasso final e, acima de tudo, o doloroso e progressivo descolamento irônico entre o eu e qualquer ideia possível de eu. Se for capaz de desistir, não pense duas vezes: simplesmente desista. Mas pode ser que a esta altura seja tarde demais, caso em que já não caberão conselhos e só me restará lhe deixar aqui como despedida, semelhante meu, meu irmão, um voto de boa sorte. |
Quem já assistiu a O Iluminado, obra-prima do terror dirigida por Stanley Kubrick, estrelada por Jack Nicholson e lançada em 1980, jamais esquece a sequência de abertura do filme. O carro ocupado por Jack Torrance (Jack Nicholson), a esposa Wendy e o filho Danny ruma montanha acima, tendo como destino o enorme e estranho hotel onde a família passará o inverno, isolada do resto do mundo. Vale a pena ver novamente. Até pelo aterrorizante trailer que vem antes na edição abaixo, e o charme especial de um dos erros de produção mais notórios do cinema, a sombra do helicóptero que aparece no canto inferior direito no tempo 2'54": www.youtube.com/watch?v=gSCr_q71ZtE |