sábado, 2 de agosto de 2014

Fragmentos de capítulos do romance "Sobre Moscas e Aranhas de Guerra"

Sobre Moscas e Aranhas de Guerra
Romance de Miguel Angel Fernandez

N° total de páginas impressas em A4 (2674 caracteres -com espaço- p/pág.): Total: 315 pg.
Gênero: Ficção.
Época: 1860 – 1870. Período da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai.
Cenário geográfico: Brasil – Paraguai.
Escrito em português
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e mergulhou no abismo: garboso Pégaso no esplendor do relâmpago.

Fazendo pátria, o soldado inimigo gritara “¡Viva López, Viva la Patria, mueran los cambás!” e com um golpe de lança abrira a barriga do camarada teutônico que se encontrava ao lado de Charles. Amparando as tripas que do talho borbotavam envoltas em jorros de sangue, ele foi tombando de joelhos, arquejando menos de dor que de espanto ao avistar as entranhas que carregara durante toda sua vida, expostas daquele modo obsceno. Vendo o aturdido companheiro remexendo em seus intestinos como a impedir a alma se esvair no vapor de cada arfar, mesmo tenso e nauseado, Charles pode vislumbrar através da névoa de terra e fumaça de pólvora, vindo em seu encalço a silhueta do mesmo soldado paraguaio que dera o golpe mortal no alemão, agora imóvel e estatelado no chão; sem afobação, segurando o revólver, fez mira e disparou: o projétil perfurou a fronte do soldado inimigo acima dos olhos esbugalhados de incredulidade e, fitando-o com estrábica censura por um instante, desabou. A pouca distância, outro combatente, observando o acontecimento, assanhado de fúria, lançou-se sobre ele berrando e expondo-se para a mira certeira de um segundo disparo à queima-roupa; sem conseguir deter seu avanço, o soldado, atropelando-o, tombou seu peso moribundo, arrastando-o consigo ao chão; cegado momentaneamente pelo sangue brotando do peito morto, ficou ali resguardado e quieto sob o corpo fedendo a montaria e sangue; à medida que restituía o fôlego, observou o número de inimigos aumentarem ao seu redor; num lampejo reparou que a impressão, em verdade, era provocada pela diminui-ção dos combatentes da sua fileira e entendeu a batalha perdida. E chegada a hora de sair dela. Tirando vantagem da confusão imperante, de um safanão afastou o cadáver que o sufocava e correu enraivado em direção à retaguarda; seu cavalo oculto entre determinadas árvores, estaria lhe esperando. Acossado por paraguaios armados de lanças, machados e sabres, deflagrou as últimas balas de seu colt, abatendo os mais expostos da caterva; acelerando a corrida e tropeçando em monturo de corpos, apartando os braços do cipoal implorante, continuou a correr até ultrapassar a fenda da trincheira de onde tinha saído e, dando um salto, emaranhou-se num labirinto de cipós e touceiras; driblando mato rasteiro e árvores, só parou diante de seu tordilho, preso às rédeas enlaçadas a uma árvore, mostrando-se indócil na espera. Charles ganhara a corrida dos inimigos por minguados metros, entretanto, na sanha da perseguição, eles prosseguiam na sua pegada; montando na cavalgadura num pinote e reconhecendo o cavaleiro no lombo, o animal deu um relincho e levantou-se escorado nas patas traseiras, ameaçando com as dianteiras o soldado que se postara à sua frente de lança em punho, cutucando-o com a ponta aguçada prestes a lanceá-lo; o animal rodopiou sobre as patas traseiras e abreviou a disputa com o coice que tirou o paraguaio do páreo, dando tempo a Charles de comandar as rédeas para o recuo e com as esporas ordenar galope na retirada. Prosseguiu na escapada por veredas agrestes e desconhecidas até perder-se dos inimigos. De repente, súbita escuridão cobriu a tarde e uma sequência de relâmpagos que apavoraram o cavalo, anunciou chuvada que, sem tardar, caiu torrencial; os odores nauseabundos da batalha impregnados em suas roupas, ofuscado pela chuva e no limite da fadiga, o homem derribou da montaria, porém, suspenso por um dos pés prendido ao arreio, permaneceu pendurado no flanco da besta. Sem reparar do incidente, infrene e aterrorizado, o animal continuava arrastando-o na sua carreira desembestada; com os cascos a lhe roçar o rosto ensanguentado, esmurrava-o nas touceiras e nos pedregulhos do caminho. Mesmo com o corpo enviesado, Charles pode ver que o lanceiro escoiceado ferira uma das patas do animal, agravando-se à medida que o esforço o exigia. Quase cego e apavorado, em seguida a várias tentativas, trapaceando a morte certa, conseguiu livrar-se do arreio que o atrelava à cavalgadura e rolando pelo campo afastou-se da ameaça; ao cessar de rodar, levantou-se e sentiu na perna a mesma dor que adivinhou, numa compaixão fraternal, seu cavalo estaria sofrendo. O afobado animal, carregando a própria ferida que agravara seu manquejar, mastigando o freio, espuma de suor a lhe cobrir os beiços arfantes, prosseguia a galopeada sem reparar da ausência do cavaleiro; ensurdecido pelo estrondear do céu que alimentava seu pavor e cego pela chuva intermitente, diante do cimo escarpado que aparecera repentinamente à sua frente, emitiu um relincho selvagem e mergulhou no abismo: garboso Pégaso no esplendor do relâmpago. Charles estava perto o bastante para assistir a cena e lembrar mais desse episódio, que das tripas moribundas do companheiro teutônico.
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O CAVALO ARRIOU AS PATAS E FOI LARGADO, MORIBUNDO, À BEIRA DA ESTRADA.

Afundando as patas até as canelas na areia molhada de alguns trechos, o pangaré magruço que Amanda montava alargava ainda mais o trajeto do caminho melancólico, sem moradas ou gente à vista. A chuva da noite anterior encharcara terra e ar; nariz escorrendo, vermelho e dolorido de esfregar para expirar os micróbios da garganta inflamada por tossir a noite inteira. Doíam-lhe as nádegas, e as roupas ásperas lhe roçavam como lixa os bicos dos seios, duros de frio. O vapor saindo das ventas do animal lhe lembrava da bebida quente por beber. E de calor, que horas mais tarde iria maldizer, invadindo todos os espaços, incluindo as sombras.

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um savanícola das planícies africanas, tornado imortal por efeito de feitiçarias.

No hall do sobrado de D. Ivone de Castro, o alinhado Dr. Queirós entregou o chapéu e a capa ao velho criado, e sem largar a maleta que este solicitara insistentemente, ouviu do negro serviçal, a modo de banguela, que Sua excelência, D. Ivone de Castro, achou-se de súbito indisposta e não poderia recebê-lo em pessoa, mas sua filha, sinhá Angélica, o faria em seu lugar.


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adicionou-a ao inventário das pestes rogadas à Igreja Católica, entre sífilis, escorbuto, lepra e carbúnculo.

No mesmo ano da graça em que a independência do Brasil é reconhecida oficialmente por Portugal e Inglaterra nasce no Rio de Janeiro, a 2 de dezembro de 1825, Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga, o sétimo filho de Dom Pedro I, Imperador do Brasil, e da Arquiduquesa Dona Leopoldina de Áustria; no mesmo ano, sem o mesmo alarde e menos prenome nasce Fernando Ferreira Queirós, que viria ser um dos médicos precursores – tardiamente reconhecido e incriminado de exercício ilegal da medicina – na implantação da ginecologia e na defesa do uso da anestesia nas cirurgias ginecológicas e obstetras no Brasil.


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recompondo suas roupas, foi que a descobriu: de cócoras num recanto escuro do cômodo...

“Até que a morte os separe”, ameaçara o padre de Dourados olhando o noivo significativamente ao casá-lo com Amanda em concisa cerimônia; légua e meia depois, atravessaram a fronteira e entraram na pequena cidade de Morqueta, já em pleno território paraguaio; em seguida chegavam ao Estabelecimento Comercial, faustoso nome alcunhado por Alfonso Galvéz, seu proprietário, que mandou providenciar o quarto do casal assim que descarregaram o carroção, enquanto Amanda se refazia da viagem. Tão cansada e aborrecida pelo esforço extra de satisfazer os arroubos carnais dele durante o fatigante trajeto, pouco se importou com o aspecto de seu novo lar, de aparência passável, mas sem nada da magnificência imaginada, graças às descrições do inventivo Alfonso... Inventivo?... men-ti-ro-so Alfonso.

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Despacho descoberto entre os pertences de Lord Russell enviado por Edward Thorntom sobre a situação do Paraguai

Assunção,
Setembro 6 de 1864.
Confidencial
Senhor:
É lamentável observar, durante minha breve estada nesta cidade, que o Governo da República não tem melhorado sob a autoridade de seu atual magistrado. Assim como foi despótico durante a presidência do pai, tem-se voltado certamente mais tirânico desde que seu filho Solano López chegou ao poder. Pratica-se o mesmo sistema inquisitorial na sua mais ampla extensão. O número de espiões é imenso; na verdade não existe um individuo na República, a quem não se lhe ensine que, por dever à sua pátria e pela obediência devida às autoridades, tem que dar constantemente parte fidedigna dos atos privados e das palavras de seus vizinhos. As famílias estão bem inteiradas de que seus serventes fazem constantes visitas ao Departamento de Polícia com o propósito de relatar tudo o que acontece em suas casas, e sabem que alguma admoestação de parte delas, terá como conseqüência imediata, falsas denúncias que poderiam ameaçar sua liberdade e expô-las aos castigos mais severos. Nem sequer na presença dos filhos se atrevem a expressar seus pensamentos. A cidade está cheia de policiais e espionam cada casa, e até interrogam, no meio da noite, qualquer pedestre solitário, a respeito de quem é de onde vem e aonde vai. Perseguem qualquer pessoa suspeita, e até na porta do quarto do clube onde eu morava, se postava um indivíduo, vestido com as roupas comuns do país, que, segundo me disse um amigo paraguaio, tratava-se de um espião que vigiava a todos os que vinham me visitar e, naturalmente, dava parte de todos eles.

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...a prazerosa desforra do estúrdio pato que fora, ao pavão de crista e plumagem colorida que virara.

Recém-viúva, a baronesa Claudia de Souto Correia Marchais não permitiu que a verba destinada ao projeto fosse abalada. Mas seu subsídio implicava um adendo sub-reptício: acatar-se-iam seus comandos sensuais quando lhe apetecesse; Queirós, cujo caráter era destituído de ímpeto, reagindo se e quando estimulado – às vezes dizendo sim ao pouco entendido e mal ouvido –, absorveu as vontades da candente senhora, mesmo –ou por isso –, quando acometido por descargas elétricas no cérebro provocando-lhe crise convulsiva, quase sempre noturna – venturoso atributo de seus ataques –, sugerindo o receio de haver ligação entre as tremuras que lhe agitavam todos os cinco membros e o orgasmo. O dela, celebrado comumente com alegre alvoroço.
Mas a desconfiança não perturbou ou lhe diminuiu o fervor em retomar e aprofundar-se nas novas técnicas no tratamento das doenças neurológicas, as quais o Barão Marchais apontara para futura publicação e ele ampliaria, adicionando observações e efetivamente divulgadas em um volume de mediana tiragem, bancada pela viúva;
(...)


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acabou com eles a botadas, e a aflita mulher nem se atreveu a tentar impedi-lo

De idade indefinida, a pequena indígena, trazida pela mão da anciã, apareceu no estabelecimento, e o único traje que aparentava usar era a negra cabeleira que se espargia nas espáduas cobrindo-a quase toda, permitindo apenas entrever o resto de poncho desgrenhado que vestia por baixo. À interrogação inevitável, a velha nativa lhe respondeu tratar-se de sua neta. E à socapa, avisou que o senhor da casa estava ciente. Neta de índia, sorrateira devia ser. Igual à avó. Concluiu Amanda, numa primeira suspeita malévola.
Nos dias que se seguiram, observando a menina realizar alegremente alguns afazeres da casa, achou seu julgamento precipitado; ao ouvir repercutir pelas dependências as risadas nas gracinhas inocentes com os bichos da casa, sentiu-se algo culpada pela afoiteza do julgamento; a despeito disso, dia após dia, certos indícios reacenderam o alerta inicial no momento em que deu com a cabrita se esgueirando rumo ao quarto de Alfonso durante a sesta; não tardou a entender tratar-se de método: a garota aguardava a oportunidade para fazê-lo quando ela encontrava-se ocupada no armazém ou nos fundos da casa; se movida a ordens ou esperteza natural, descobriria em seguida; na desconfiança, resolveu a emboscada até surpreender a nova oponente num candente flagrante: Cavalgando sobre o desvairado marido, a trêfega indiazinha ria sem vozerio, coberta unicamente pela comprida cabeleira. Naquele momento engoliu o alarde e julgando-se astuta, preferiu guardar a descoberta. Conservaria essa arma para ocasião mais oportuna; entretanto, firme sentinela a partir desse dia, a constante tocaia defensiva atrapalhou suas próprias e clandestinas peripécias eróticas. Mesmo admitindo o fator divertimento a integrá-las, a tensão pelo acúmulo das falsidades começou a aborrecê-la. E a irritabilidade cresceu na proporção do comportamento de Alfonso, tornando-se cada vez mais distante e áspero com ela; por conseguinte, a velha indígena começara a ostentar um sorriso matreiro na sua presença: perdera respeito e medo. Então teve a certeza de suas suspeitas primeiras estarem certas: a vinda da indiazinha era treta da velha para prejudicá-la.
(...)

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todavia, a cirurgia, se por falha ou acaso, causara seqüelas graves

A mesma fonte agradável que tonificara a requisição de seus serviços, ajudou a renovar o interesse dos editores de revistas especializadas a publicar seus artigos onde alertava do pouco caso com a saúde pública e, ao insistir na necessidade de expropriações de grandes áreas necessárias à construção da projetada maternidade, voltara a afrontar juristas, irritando proprietariado, políticos e caterva envolvida... Senão quando, no paralelo da intimidade, e a despeito de todos os cuidados pré-natais que Queirós tomara ao detectar na gestação a complicação que Letícia omitira, a evolução deste embaraço veio dilatar-se o suficiente para colocar a vida dela em tal grau de risco que, em concordância, resolveram interromper a gravidez e, apropriadamente, Queirós o obstetra a realizar a operação. Mas a iniciativa foi dispensada pela avalanche sanguinolenta de um aborto espontâneo que confundiria a preta Gervásia ao deduzir motivos por ignorar fatos e cujo testemunho posterior provocaria efeitos deletérios que abasteceriam José e prejudicar Fernando Queirós.


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quero vê-lo de volta com as mãos
sujas do sangue dos traidores.

O Paraguai ter tomado o navio brasileiro Marquês de Olinda em Assunção, e a noticia da invasão do Mato Grosso com a tomada do forte Coimbra, foi a ratificação formal de guerra ao Brasil, e todos os exércitos instalados nos postos de fronteira foram impelidos à retirada.
A unidade operativa onde Francisco Lacerda estava designado seguiu a determinação e a evacuação do grupo de militares postados na fronteira com a cidade de Morqueta, foi imediata.
Após algumas horas cavalgadas na retirada pelo interior do Brasil, e a despeito da possibilidade de estarem sendo perseguidos, fazia-se necessário algum descanso para os cavalos e toda a tropa foi apeando, preparando-se a pernoitar.
Mas, ao desmontar, o comandante ordenou a seu imediato.
– Nada de acampamento! Daqui a pouco voltamos à estrada. Mande o cabo Francisco Lacerda vir falá comigo. – Num minuto, o cabo já se aperolava na sua frente. – Venha comigo, cabo. – O oficial se afastou da tropa por alguns metros e parou numa clareira depois de se certificar ninguém conseguiria ouvi-los. O cabo, que o seguira, se perfilou perto dele. O olhar do superior fito na copa frondosa da árvore que lhes dava sombra, disse.
– Poucos sabem da missão que lhe incumbi fazer em Morqueta.
– Ciente, senhor.
– Se é tão sabido, sabe então que o desastre no Mato Grosso, poderia ter sido adiado ou ao menos dificultado. Quem sabe até evitado.

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ouviu segunda detonação e a bala foi-se incrustar no tronco da árvore.

Passaram-se alguns dias da estranha ocorrência conjeturando haver sonhado com sua irmã, de quem, vez por outra, lembrava com um afeto que a bruma dos anos passados aumentara; seria talvez uma indicação de que Angélica estaria viva nalgum lugar e, por um enigma que não procurava desvendar, surgira das sombras para alertá-la de inimigos? E ela conhecia dois. Ou haveria mais?
Num domingo, folga do quartel e por isso escolhido para encontros mais prolongados, estivera aguardando Chico até o entardecer no lugar habitual, detrás da venda, à beira do capão, e ele não aparecera, tampouco nas duas noites seguintes e seus dias. Irritou-se tanto pelo suposto desplante, que as noticias a propósito da tensão entre Brasil e Paraguai, vindas dos agora raros frequentadores do armazém, lhe pareceram confusas o bastante para não lhes prestar atenção.

(...)
As ventas dos cavalos paraguaios dilatavam-se no esforço do furioso galope que levantando o pó da estrada árida grudava-se no suor de homens e cavalos.
Sem eles o saberem, pulando todo tipo de obstáculos nas veredas que atravessava quase com a destreza de um veloz cavalo alado, Francisco ia deixando-os para trás. De atalho em atalho. Salto a salto.
(...)
Desolada Amanda, retorna ao quarto e, se vestindo, dá um pulo de sobressalto ao ouvir, provindo da frente da casa, o estrondo da porta de entrada do armazém sendo derrubada, sem, contudo, avistar a entrada sorrateira do soldado pela janela do quarto.
Acorda Amanda!

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ecos dos urros da onça meteram-lhe menos temor do que uma certeza como de pedra apertando no peito.

Depois de campear durante horas em território paraguaio, e garantido o despiste na soldadesca, o casal resolve desafogar se refugiando num estratégico amontoado de palmeiras; arfantes, sentam-se à sombra de uma delas, tão cansados e suados quanto suas montarias que largam a pastarem perto. Minutos depois, enquanto se recuperam, se entreolham: nela, combinação de gratidão e afeição; nele, sorriso de alívio e assombro.
– Xi! Nos safamos por uma unha! – disse ele, sacudindo a cabeça entre as mãos, medindo as consequências.
(...)

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Queirós seria viúvo antigo e com amante escandalosamente instalada na casa.

Na entrada da sala, o julgado imortal Mateus, inconformado com a tardança da moça em notá-los, anuncia o visitante, num decibel acima do permitido a um criado.
– Sinhá Angélica! O doutor de medicina está aqui...
Sobressaltada ao vê-los, a moça fecha imediatamente o livro que tem no colo e se põe de pé, o sol tropical da manhã rebate nas venezianas da sacada, iluminam-lhe o semblante, os olhos glaucos e os brancos dentes que o sorriso exibe de “lábios vermelhos: joguetes que o tempo estraga.” O belo parecer que a luz delineia não lhe é indiferente a Queirós, como não lhe foi ao conhecê-la semana retrasada; nem o título do romance de José de Alencar que ela segura nas mãos.
– Doutor Queirós. Seja bem-vindo! – exclama a jovem, com um dedo graciosamente anelando pequena e fugidia mecha do encaracolado cabelo enrodilhado num coque. – Prazer em tê-lo na nossa casa.
– O prazer é todo meu. Recebi seu bilhete ontem à tarde! E cá estou.
– E eu a esperá-lo!
(...)

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manto de pesadelos, animais como cobras, dragões, boiúnas aconselham com vozes cavernosas.

Benjamin nasceu quando Marilda nasceu.
Cresceu ao mesmo tempo e no mesmo pedaço de chão humilde e vizinho.
Primeiras letras, mesma professora da vila.
Foi ao despontarem assustadas e sensuais as primeiras carícias, nos cantos escuros das casas e no frescor das matas; depois que as juras de amor umedeceram o incipiente bigode de Benjamin e palpitaram nos seios verdes de Marilda, na idade em que a eternidade existe, que sucedeu:
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o gosto pela matemática de seu colega, pouco impressionaram a solteirona interiorana.

Em 1865 – ao arrebentar a guerra que Francisco Solano Lopes, o presidente do Paraguai, suscitara sem maior motivo do que os ditames da ambição pessoal; quando muito a invocar o vão pretexto da manutenção do equilíbrio internacional – o Brasil, obrigado a defender honra e direitos, dispôs-se, denodadamente, para a luta. A fim de reagir contra o inimigo, em todos os pontos onde podia enfrentá-lo, o plano da invasão do Paraguai setentrional acudiu naturalmente a todos os espíritos; preparou-se uma expedição para este fim.
Alfredo d’Escragnolle Taunay


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saber de quem se tratava e qual o envolvimento entre eles, o havido e, em especial, se por haver.

Haviam-se passado vários dias da visita de Queirós à casa de Angélica, e ela já esquecera completamente da atitude estrambótica que ele tivera ao se despedir; ainda com seu interesse intacto “em aprofundar conhecimentos e encontrar pretextos para promover um reencontro”, munida com a coragem inspirada pelo desafio, Angélica balbuciou uma sentença: “O destemor é inicio da ação, mas a sorte é a dona do fim”, aproximou-se da secretária e escreveu um segundo bilhete dirigido ao:
“Prezado Dr. Queirós.
Quem lhe envia esta mensagem, é sua sempre admiradora e vêm, através desta, convidá-lo a outra reunião, menos profissional que a anterior, quando ao tratar minha mãe. Desta feita será na confeitaria Imperador, amanhã, terça-feira, às 16h. Lá estarei à sua espera.
Sua de sempre, Angélica de Castro.”

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Não precisa de violência com mulheres de categoria. Mesmo sendo brasileiras.


Diante do avanço das tropas paraguaias sobre Corumbá, grande parte da inerme população abandonara suas casas e fazendas fugindo para lugares mais acautelados e distantes; sem terem a mesma opção, muitos outros se esconderam nas florestas circunvizinhas onde foram facilmente caçados e forçados a retornar à cidade, sofrendo toda sorte de agravos. Os homens foram submetidos a rigorosos interrogatórios para confessarem envolvimentos em resistências. E os que nada sabiam ou resistiram a confessar, acusados de espionagem e mortos a lançadas; as mulheres, agredidas e violentadas, muitas delas foram obrigadas a acompanhar o exército, condenadas a servirem de escravas sexuais aos oficiais paraguaios.
(...)


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“Não te importes com o passado, não sondes o futuro, não percas este instante: Eis a paz.”

Angélica sentia que a amizade iniciada na noite de autógrafos, acrescida na visita profissional a sua mãe – malgrado sua incomum e intempestiva despedida –, e aprofundada na confeitaria, se tornara pouco a pouco um sentimento de afeição mais intenso e absorvente.
(...)
Diferente das outras sinhás que entre as páginas de um livro conservavam flores secas e receitas de doces, entre as do caderno pessoal de Angélica, estavam guardados os pretextos e as razões, sob a rubrica: Sincero e justo; a crise na saúde de Consuelo, durante a gravidez, era motivo justificável. Sincero, justo. E urgente.
Então, o quarto encontro realizou-se num passeio ao Jardim Botânico, aceito por Queirós com reservas, devido à complicada situação com a saúde de Natividade, que havia semanas apresentara sintomas de séria doença, em forma e conteúdo. Uma cefaléia intermitente e um olho cuja órbita fora tomada por um inchaço que crescia a cada dia. Envolvido em pesquisas para desvendar agente, tratamento e cura, sua cabeça andava por esses dias em permanente ebulição. Acabou aceitando o convite por considerá-lo agradável distração e virtualmente uma trégua na tensão acumulada. E a moça aparentava um especial interesse nele, difícil de desconsiderar. E ele uma atração por ela sem se perguntar por que.
(...)

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E a encontrou quase entre as patas do animal: curumim, de certo desviado do grupo vigiado

Sem uma gota de vento nesse amanhecer, Amanda campeava pela vereda estreita e barrenta no início de um destino impensado, e sentiu:
que lhe doíam as nádegas;
que as roupas ásperas roçavam parecendo lixa, os bicos dos seios tesos de frio;
que o vapor saindo das ventas do animal lhe avisava da bebida quente ainda não bebida. E de calor; que horas depois iria maldizer e abrasaria todos os espaços, incluindo as sombras.

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Para esse homem só existe um
coração sobre a terra. O dele!

Uma velha negra sozinha numa esquina no meio da noite, espera.
Uma carruagem para a seu lado. A um ademã do interior do veículo, ela entra e senta à frente de dois homens. Um é Jose d’Almeida que interpela, acerbo:
– Espero que seja algo muito importante, Gervásia. Já te disse cem vezes para esperar eu te procurar. – A preta escrava observa o sujeito que está sentado ao lado do amo com expressão de duvida. – Pode falar, ele é de confiança. Aliás, daqui pra frente, se ele te procurar você obedece ao que te mandar – O aludido pigarreou, começou a limpar as grossas lentes do óculo com um lenço e num ímpeto automático começou a se apresentar:
– Lourival Romano, oficial...
– Depois, Lourival, depois. Vai, preta, fala logo.

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jogada lânguida sobre um canapé,
a paciente o aguarda junto ao leito

Queirós apeou do tílburi e postando-se na calçada permaneceu quieto por longo momento ao pé do sobrado; tirando do bolso a chave, iluminada pela luz do candeeiro da esquina próxima, ficou a examiná-la, pensativo. Tão pensativo, como parecia estar o sujeito na esquina próxima, limpando seu óculo de grossos aros. O ruído dos postigos da janela do andar de cima, lhe indicou que era aguardado. Saiu das ruminações, meteu a chave na fechadura e entrou. No cimo da escada, segurando castiçal e vela acesa, o aguardava a escrava. Galgando as escadas, contou todos os degraus amaciados pelo tapete tal qual fazia habitualmente, até alcançar o último, o de número vinte.
(...)

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os olhos que o observam avermelham
pelo lacrimejar.
 
Ao chegar em casa, o doutor abriu seu caderno de anotações onde estava escrito:
Relatório Natividade:
O pacifico convívio com minha amiga teve uma perturbação triste e dolorosa, e o início se deu há meses: Um tumor aviltante, surgindo detrás de um dos olhos dela, lenta, mas inexoravelmente, chegou quase a expulsá-lo da órbita. Todos meus conhecimentos foram direcionados a descobrir origem e cura. Tudo em vão. O avanço da moléstia não tem cedido um palmo. Nas últimas semanas, ela adquiriu a moda de abrir a janela a meio pau. Acha melhor assim; pretende encobrir as deformações de seu rosto da curiosidade dos vizinhos, e principalmente dos raros e teimosos pacientes que aceito no meu consultório porque ainda em tratamento inconcluso...
(...)

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Preparando-se para deitar,
Dna Adelaide se surpreende ao ser informada


Preparando-se para deitar, D. Adelaide se sobressalta ao ser informada que o sobrinho está aguardando na sala. Depressa veste um roupão e saindo do dormitório vai a seu encontro: perturba-lhe o olhar do sobrinho, de pé no meio da sala, seus ombros vergados por alguma fadiga profunda que ela só pode pensar: “Essa desgraceira do diabo está a acabar com a alma de meu querido”
Mas diz: – Meu Fernandinho! Que surpresa doce. – Os dois se aproximam e se enlaçam num abraço que surpreende a padeira pela força de seu aperto. – Aconteceu alguma coisa? – pronuncia debilmente.
– Nada... eu queria vê-la, tia. Mais tarde, conversar um pouco com o dr. Durval...
– Pois não o sabes? Nosso doutor, depois de tantas ameaças, como tu cansastes de ouvi-lo dizer, agora é “somente tradutor”! Como ele se gaba. E a pedido do imperador!

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excitada de amor, aguardava teu
desejo beijar minhas coxas em brasa...

Cambaleante, tateando as paredes, a mulher perambula pela casa como um espectro a quem lhe custasse arrastar um corpo adventício; escamoteado das sombras, um resíduo de luz mostra vislumbres da cauda do seu branco penhoar e seu vestígio no pó do chão; ao se alastrar, vai balançando carcaças de insetos presos em teias de aranha sem, contudo, atraírem a atenção do gato rajado e zarolho que a acompanha grudado aos seus pés; negra cabeleira solta sobre ombros vergados por um peso invisível, lhe oculta metade do rosto pálido e abatido; nas janelas cerradas, cortinas densas impedem a luz exterior entrar, mas não o martelar da chuvarada sobre a rua, nem os indícios do entardecer nas abafadas exclamações dos passantes que retumbam dilatando os vapores do silêncio e o ermo da casa quase palpável; no seu andar errático, se detém frente a uma moldura pendurada na parede e, por trás de olheiras profundas, observa o pano negro que a cobre; encosta a fronte nele, agita a cabeça e diz com voz enrouquecida: “não há ninguém que me reconheça nesta casa que nunca foi minha.”
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Num canto do teto, os quatro pares de patas
da aranha se agarram na superfície


O amanhecer do dia seguinte ilumina Queirós acomodado numa charrete conduzida por Urtigão, o criado de tia Adelaide, em direção à Barra da Tijuca. Num ponto da estrada sinalizado por uma modesta e branca capela, o cocheiro saiu da estrada principal enveredando por uma alameda até chegar a um portão que devia ficar a pouco mais de 40 passos da casa de dois pavimentos rodeada de floridos jardins, onde todas suas janelas abertas, mostravam saudantes e leves cortinas balançando à brisa, como a cortejar os recém chegados. Sem saber bem por que, Queirós sorriu internamente prazeroso por estar naquele lugar.

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um breve olhar desde o limiar da porta,
fez caretas de nojo e apertou as narinas.


Gervásia esta sozinha na mesma esquina onde se encontrava naquela noite...
A carruagem para ao seu lado. Sem esperar por nenhum sinal, entra e senta à frente de Jose d’Almeida e Lourival:
– Então... vai, preta, fala logo.
– Vo le dizé, dotó. Nhá Natividade ta é morta, dotó. Deus a tenha...
– Morta, Natividade? Como... Como você sabe?
– De vê, doto! Morta de morrida de fedê e tudo.
– Mas como... você a viu... na casa?
–Fui bisbilhotá lá dentro.
– Por que você entrou lá?
– Andava perto, devagar e só oiando, como o nhô mandou. E não é que minha conhecida tava na porta da casa do dotó, toda atenta e aflita. Que que foi, perguntei. “Meu gato sumido deve de ta lá dentro. Ta ouvindo?” Ela falou. E dava mesmo pra ouvir da calçada o uivo do marrano do diabo. Como de gemido de dor. E dó de minha vizinha aí toda, dizendo que só podia sé o bicho sumido da filha dela. Que pedia que pedia pelo bicho voltá.

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o punhal na mão do escravo está pronto para uso...

A garoa intermitente enlameou todos os caminhos por onde Ezequiel conduz o bando de índios e negros, cobertos de noite: “bom pro caçador, ruim pra caça” pensa ele, porque sabe.
A escassos passos da dupla de sentinelas que encontram nas imediações do acampamento paraguaio, Ezequiel, no momento preciso, faz um gesto e um dos índios, já de prontidão, tesa o arco e, sibilando, a flecha atravessa o espaço acertando mira escolhida: a garganta de um dos soldados que tomba com o impacto e a surpresa; seu companheiro observa aparvalhado custando entender, o que lhe é fatal: um segundo índio está correndo em sua direção e na mão erguida, um machado em riste desce sobre sua cabeça, abrindo-a até os ombros; o soldado despenca ao lado do moribundo camarada ainda tentando arrancar a flecha que lhe atravessa o pescoço; a mesma machadinha vai em sua ajuda, decepando-o com dois golpes; o sangue jorra espesso misturando-se à água do chuvisco que tudo encharcara; a turma de Ezequiel retoma a marcha; correm na escuridão pelos caminhos conhecidos dos indígenas; preferem driblar outras sentinelas; o alvoroço e as luzes dos lampiões indicam estarem bem perto do arraial dos inimigos; cautela e sigilo nos passos que o mato molhado amortece; avançam na calada dirigindo-se à barraca que Ezequiel julga alvo certo: os aposentos do tal Coronel Barrios.
(...)
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Rodrigo saiu do acampamento
com o bornal cheio e a frieza da apatia.

E a invasão, pelo norte do Paraguai é finalmente efetuada. Depois de dias se arrastando por terras alagadiças intermináveis, acampam em várzeas inteiramente encharcadas. Como Rodrigo, muitos improvisam e forram o chão da barraca com ramos verdes a despeito de ensopados, e deitar, depois de lavar as pernas impregnadas da fétida lama que cerca as barracas.

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Tua gente não sabe que os malditos
paraguaios ocuparam todo o Brasil?


Saindo do interior da casa, Raquel atravessa vacilante o amplo terraço que a circunda e encosta-se à sacada; sob o clarão do luar na noite estival ela parece ainda mais alva e sua silhueta se funde ao roupão branco que veste; leva na mão, outrora macia, hoje calejada por impensada enxada, um cálice com bebida e na outra, um revólver; cambaleante, esvazia o copo de um gole e estremece; escorada na balaustrada, observa os pirilampos cintilando como grãos de luz escapando da lua cheia e um profundo suspiro revela seu cansaço; as vagarosas lágrimas que o seguem, angústia, e, olhando a arma detidamente, morte.
(...)
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lanças, sabres e punhais, lanceando, degolando, mutilando, trucidando mulheres, homens e crianças.

Depois daquela intimidade com Baquara, as condições de Amanda mudaram: seu pé foi liberado, permitiram-lhe andar pelo acampamento livremente; permitir não seria a palavra adequada, na verdade passaram a considerá-la mais uma do grupo; a relação com o veterano guarani, com quem desfrutava todas as noites, de certa forma a legitimaram.
Logo Amanda entendeu que a comunidade de seus novos amigos era uma tribo nômade não por costume, mas por receio provocado pela sanha do exército paraguaio lhes arrancar os filhos com idade apropriada para serem recrutados; quando a atenta vigilância de olheiros indicava a iminência de avistarem um pelotão com essa intenção, o bando recolhia as tendas mudando o local do acampamento na tentativa, nem sempre bem sucedida, de proteger os meninos mais crescidos, deixando os pequenos, as mulheres e os velhos à vista. E Baquara, líder natural do bando, prudente, evitava expor demasiado seu aspecto vigoroso. Da mesma forma, Amanda aprendera a compartir com as crianças os improvisados refúgios; afinal, achava que também devia estar sendo caçada.
O massacre Amanda!


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Ele se deu conta que as lágrimas
eram de fúria quando ouviu sua voz.

Anoitece e Ezequiel cavalga satisfeito, levando consigo alguns cavalos sem montaria, destinados a serem atrelados a charretes que levarão os pretos velhos à chapada, junto com Raquel e família, como acertado previamente; ao chegar à senzala, seu contentamento virou precaução e ressabio: os velhos o alertaram acerca de ruídos e gritos estranhos vindos da Casa Grande, inclusive barulho de arma de fogo. E não, não tinham visto soldados paraguaios nas redondezas. O céu, agora escuro e vazio de lua, a varanda, sem sua ex-sinhá a esperá-lo, aumentaram-lhe a cautela. Subiu à varanda e depositou os embrulhos em cima do amplo banco, leito de sua primeira relação com mulher branca e aguardou por ela. Titubeante ao principio, no fim de certo tempo de inquietante espera, resolveu observar o interior da casa pela fresta da janela de sacada.
(...)
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e espantando nuvem de moscas ao puxar a coberta,
uma sensação de profanação o sacudiu


Movimentada reunião de vizinhos em frente à residência no L 645 da Rua do Lavradio e nos parapeitos das janelas circunvizinhas, pejadas de criadas e escravas assomando sua curiosidade, aguardando, inquietas, a vinda da policia, que, em efeito, surgiu representada por dois soldados montados em velhos cavalos, de imediato festejados por bando de fâmulos, negrinhos e cachorros, todos barulhentos.
Ao apearem, os policiais foram cercados pela pequena multidão de gente grande, criados, agregados e escravos de todas as idades, que se ajuntaram ao bando de negrinhos. Enlaçadas as bridas na árvore mais próxima, o que aparentava maior autoridade dirigiu-se ao abelhudo agrupamento; adivinhando a questão, o grupo se apartou e, no meio do cerco formado ao seu redor, uma mulher negra de indefinida idade, empertigou-se estufando peito mirrado.
– Quem é Gervásia? – Vociferou o oficial.

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o desassossego do cavalo contrastava
com a quietação do lugar

Já cavalgara havia três dias e a fome, atrelada a seu bornal agora vazio, lhe pesava mais a cada quilômetro andado. Desnorteado em busca do Brasil, exausto de sua sorte e ainda com seqüelas da febre, peregrino de caminhos que jamais pensou percorrer, marchava duvidando dos pontos cardeais; e os ventos nortes, oestes e lestes, o estacionavam em ponto morto.
Dormitando por longos trajetos pela estrada ignota, onde marchava a passo cansado, acordou sobressaltado com a parada repentina do cavalo que estacou, mordendo o freio e assoprando seu receio pelas ventas dilatadas: no meio do caminho, na sua frente, um velho olhava-o, peitando a iminência de ser atropelado. Rodrigo puxou as rédeas e fez retroceder o animal.
(...)
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Apertou os dentes com força realçando
o osso da mandíbula e sibilou


Lourival acabara de entrar no gabinete do deputado consultor, quando este entrou pela porta lateral, abanando um jornal e um sorriso bizarro que tentava disfarçar. Mas o entusiasmo lhe escapava pelos olhos.
– O senhor viu, ontem. Minha amiga Natividade... que Deus a tenha... junto a Letícia... – Fez uma breve pausa em homenagem póstuma, mas a exultação reacendeu em poucos segundos. O meirinho pôs cara de concentração, tentando entender o entusiasmo do senador.
(...)
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O alvoroçado grupo logo iniciou sua instalação
na ribanceira do rio, à sombra das macaúbas.

A construção surgiu abruptamente atrás da macega, cujos caules e arestas cortantes estiveram dificultando o andor do alazão. Alerta, Rodrigo se prontificou debaixo da sombra de um anhambú e ficou observando os arredores do que deduziu ser um acanhado engenho de erva-mate de aspecto abandonado. Enquanto ficou amoitado, de ouvir, somente pássaros e insetos. De ver, nem bicho de quatro patas ou gente. Teriam avistado sua aproximação e, ocultos, esperavam dar o bote? Brasileiros? Valhacouto de paraguaios? Tanto um como outro, ameaçadores para ele. ...em períodos como este, o soldado que abandona o seu exército ou que não se esforça durante o combate, será aniquilado ou por seu próprio grupo, ou pelo grupo oposto, pois jamais terá a confiança de nenhum dos dois. Não podia retroceder, e sua sede e fome assim ordenavam. Arriscaria.

(...)
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prostrou na cama o resto daquele dia, recusando
qualquer alento com canja de galhinha


Ocasionada pelo vazio indistinto entre o pouco sabido e o muito ignorado, a ausência de Fernando criou um desassossego de sombrias perspectivas. Dias nesses devaneios e Angélica iria se defrontar com o mau presságio concretizado numa manhã de quinta-feira, através da boca desdentada de Mateus, mostrando a manchete de um jornal que segurava postado na entrada do aposento onde estavam reunidas as três mulheres.
“ASSASSINATO OU SUICÍDIO? MISTÉRIO NA RESIDÊNCIA DO DOUTOR QUEIRÓS”
– O doutor Queirós, no jornal, sinhá. – informou, admirado.
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rompantes estrambóticos atrás de milagres farmacológicos,
que curassem a mosca-morta


Conceição entrou no dormitório, apartou as cortinas das janelas, e a luz da manhã bateu nos olhos da baronesa, que dormia. As pálpebras piscaram, reclamando.
– Que c'est cela, Conceição? Que modos... – a folha de jornal que a escrava lhe estendia calou o protesto e plantou a estranheza. Claudia arrancou o papel das mãos e leu: “CRIME E MISTÉRIO NO ANDARAÍ...” e interrompendo a leitura, ouviu a explicação de Conceição:
– Na sala. Um delegado. Eu disse que sua Excelência dormia. Que não o atenderia. Insistiu. Eu disse que Sua Excelência não costuma atendé ninguém antes do meio-dia. Ele disse que esperaria o dia todo se necessário. Mas que lhe entregasse este jornal, e que vosmecê entenderia e ia queré falá com ele. Tá na sala, esperando.
Terminando de ler a matéria de jornal, a baronesa mastigou com a boca seca de sono: “Fernando, suspeito de...” furiosa, arremessou longe a folha, sem poder acreditar no que acabara de ler...

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Amoitados entre as árvores da calçada a
meio quarteirão de onde está localizada a padaria


Amoitados entre as árvores da calçada a meio quarteirão da padaria de dona Adelaide, Lourival e outro homem conversam cochichando.
A seguir, o delegado caminha em direção do estabelecimento, deixando o comparsa no lugar; ao entrar na padaria, encontra dona Adelaide ocupada atrás do balcão em arrumar pães, afastando moscas e abelhas das travessas. Lourival encosta no mostrador.
– Que vai querer? – quer saber a patroa.
– Saber se o doutor Fernando Queirós se encontra...
– Primeiro que meu sobrinho não mora nem se ‘encontra’. E segundo. Quem é o distinto que quer saber??
– Meu nome é Lourival Romano, delegado de justiça a mando do desembargador...
– O que meu Fernandinho tem com isso? – Interrompeu a padeira.
(...)

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olhou em volta ao sentir-se amarrado
ao catre onde estava deitado

Já era noite fechada quando alcançaram a periferia da cidade e atravessaram o sinistro portão da entrada de um edifício com aspecto lastimável, em cuja tabuleta mal podia se ler: “Lazareto... Santa casa de misericórdia”
Na frente da entrada do edifício, pararam a carroça e um dos homens desceu acelerado. Puxou a corrente da campainha e aguardou. A pequena janela do portão se abriu e ouviu a voz feminina: “De que se trata?”
– Lourival? – Respondeu o homem interrogando.
A seguir, o homem teve de encostar o ouvido na abertura para ouvir instruções que executou rapidamente: Voltou à carroça e ordenou antes de entrar na cabine e sentar ao lado de Queirós que parecia dormir. – Pelos fundos, atrás do prédio! – As rédeas incitaram os animais e logo o veículo rodeou os muros, detendo-se num segundo portão. Um lampião iluminava a freira que abriu a porta e fez sinais. Segurando Queirós para ajudá-lo a andar, os dois homens entraram no lugar.
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o odor ubíquo da gangrena invade sua respiração

Ao voltar a si, o corpo inerte da moça da cama ao lado tinha desaparecido e ele continuava amarrado, mas por alguma razão a atadura de uma das correias afrouxara-se. Sem muito esforço consegue retirar a outra, desamarrando o nó que a segura. Ao lembrar das ameaças da Madre Superiora, imediatamente leva as mãos à virilha e constata que nada acontecera – sua prevenção acrescenta um ‘ainda’ ameaçador que o incita a levantar da cama e correr até a porta, agarrar a maçaneta, puxar, agitar e, porque trancada, exclamar sua indignação e alarme, mas um instintivo alerta lhe indica melhor se conter, para refletir e inferir que a situação não tinha qualquer referencia, nem aos pesadelos que um dia imaginaria ter. Anda inquieto pelo acanhado espaço, afasta as moscas que o perseguem, desvia das teias de aranha, até ouvir uma bulha de passos se aproximando; retorna ao catre, deita-se, finge dormir.
(...)
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Um poderoso deputado que se pretende próximo
ministro da Justiça, envolvido numa historia escabrosa de desforra pessoal



Noite avançada quando uma Conceição espantada, anunciou.
– Dotó Queirós na sala, sinhá! De soldado...
– Queirós? Soldat? Que estás dizendo preta?
– Sem sapato...
– Descalço? Mas... Ai, ai... que ce tá esperando para mandar entrar?
Vestindo rapidamente o preto déshabillé, Claudia aguardou um minuto para o doutor entrar no quarto e, ao vê-lo, pese sua estranha aparência, correu a lhe beijar o rosto e a fixar seus olhos assustados nos dele.
– Qui uniforme qui est? Olha seus pés! E essa barba por fazer... Por onde o senhor andou todos este tempo?
– Alguns dias, no sítio de um amigo...
– Sítio? Amigo? Como é possível...
– O pior viria depois quando aceitei acompanhar uns homens para verificar a morte de Natividade... Depois disso... eles ... Não posso lhe contar em detalhe todo o pesadelo. Mas estive prisioneiro numa santa casa...

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minha resistência contra a morte
foi inútil mais uma vez.

– Sua excelência baronesa mandou lhe entregar esta mensagem.
Assim que Angélica apanhou o envelope, Conceição se retirou sem lhe dar tempo de agradecer ou de perguntar alguma coisa.
– Quem era essa moça, filha? – disse atrás dela Dona Ivone. – Creio que nunca a vi antes...
– Amiga. Criada de uma amiga. Ninguém. – Deu meia volta e foi até a escrivaninha. Viu seu nome escrito no envelope, e com um cortador e o coração a galope abriu-o, sem notar que estava sendo observada discretamente de longe pela tia cuja curiosidade aumentara com a atitude da sobrinha.
A moça ansiosa, começou a ler:

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um bando de mulheres dispostas
a saciar anseios de militares solitários

Nota da Gazeta de Notícias
Acompanhando o curso do rio Paraguai, a invasão do Paraguai foi iniciada no Passo da Pátria, onde o general Osório desembarcou à frente de um destacamento brasileiro. De meados de 1866 até julho de 1868, as operações militares agruparam-se na confluência dos rios Paraguai e Paraná, onde se encontravam os principais pontos fortificados dos paraguaios. Em mais de dois anos o avanço dos invasores foi bloqueado naquela região, apesar das primeiras vitórias da Tríplice Aliança...


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Dissimulada, repousou sua mão no joelho
do soldado e ficou quieta por momentos, esperando reação.


– Quieto, soldado! – ordenou a nervosa mulher, sacudindo ameaçadoramente o cano do fuzil encostado no peito de Rodrigo. Não obstante a jaqueta de origem paraguaia, a pronúncia em português desafogou de certo modo sua apreensão. Dando um suspiro, balbuciou:
– Abaixe essa arma! – o fizera com voz tão embargada pelo sobressalto e o embaraço que sofrera, que mal pode ser ouvida, aumentando a tensão da dona que pronta a apertar o gatilho, gritou:
– Que disse, soldado?
– Abaixe essa arma. – repetiu ele. Alçando mais a voz e, quase indignado, emendou: Vosmecê é brasileira, mulher! – e encarando seus próprios pés descalços, afirmou aparvalhado: – Como eu! – E mirou no buraco negro do cano, tão perto, que podia conferir o cheiro metálico misturado com pólvora antiga. Cravada no orifício, a vista acompanhou o fuzil se afastando devagar, até se abaixar e descansar entre os pés da mulher; ele reparou nas rasgadas botas de soldado que os calçava e na borda da saia comprida, de cor indefinida, quase os cobrindo; alçou a vista e verificou por debaixo da máscara que os rigores da intempérie lhe estampava, a boniteza de um rosto de cabocla e na boca ainda sedutora, despontar um ricto sardônico.


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Os segredos quando são divulgados entre amigos,
tem o efeito de reforçar os elos.


Angélica reagiu igual a tantas outras mulheres no Brasil, ávida por notícias de familiares no front; lia com aflição secreta as publicações dos jornais, atenta às notícias sobre o andamento da guerra; nas cartas que recebia de Evaristo narrando suas peripécias, se apanhava procurando qualquer referência a respeito de Fernando, como se isso fosse natural; cartas que dona Ivone igualmente lia, encontradas largadas na escrivaninha de sua sobrinha ou olvidadas na sala sem qualquer acanhamento em evidenciar menosprezo. Diante disso, a velha senhora permanecia confusa e desgostosa. Contudo, não demorou a desconfiar do comportamento da filha. A ressabiada senhora começara a presumir que sua querida só podia estar ainda apaixonada pelo homem errado. Um fugitivo que lhe dissera adeus.

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os dias se seguiram numa aparente calma que nenhuma fada madrinha duvidaria da aptidão de seus auspícios.

Alimentada pela comiseração, pela arrogância, a solidão e pelo desejo de ferir e mesmo se anular, o antes inflexível ânimo de Angélica tornou-se benevolente com a ideia que as astúcias alcoviteiras da tia, somadas à insistência lamuriante do mutilado herói, lograram plantar na sua resignação; e a certeza que à velha senhora lhe faltava confirmar – Não disse? Era questão de tempo e perseverança -, concretizou-se no dia 11 de julho. Angélica e Evaristo de Souto Correia contraíram núpcias, para alvoroço de dona Ivone e a família do nubente. Onde se incluía a tia Claudia de Souto Correia Marchais entusiasmada com o evento, desejando mimosear o casal com uma lua de mel na Europa, logo recusada pelo consciencioso Capitão de Voluntários, por considerar impróprio ausentar-se do país com uma guerra em curso. Parecer que sua esposa apoiava, mas por motivos outros mui particulares, que ninguém necessitava conhecer. Mormente o inaugural marido.
O que ninguém sabia, nem devia – dona Ivone, sobretudo – o marido foi o primeiro a conhecer: os direitos íntimos de marido seriam restringidos a dormir em leitos separados, ainda que no mesmo cômodo; fachada indispensável para não evidenciar qualquer distopia matrimonial perante dona Ivone e criadagem; uma imposição acatada com forçada submissão por Evaristo, mas esperançoso de um dia alcançar despegar as folhas deste “sine qua non”:
(...)
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O estrondo de um disparo calou a voz e cessou
a barulhada do acampamento

Era início de noite e acabara de cair um temporal no acampamento Itapira, quando o sujeito carrancudo desceu da charrete que o trouxera desde o ponto de fiscalização. Segurando debaixo do braço uma abarrotada maleta que lhe dificultava os movimentos, tentou descarregar uma outra mala, bem maior, num demorado e mirabolante esforço que não sensibilizou o condutor na boleia, que se mostrava ansioso para se livrar do passageiro; tampouco se virou quando, depois de malogradas tentativas, a mala derrapou vindo cair na poça de lama sobre a qual o veículo estacionara; o óculo de graúdas hastes do homem não a acompanhou por estarem seguras por um cordão amarrado na nuca. Com igual dificuldade, o homem arrastou-a para fora da cova; furibundo no sarcasmo, proferiu a guisa de despedida.
(...)
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onde se entrelaçam o temor da perda, a inveja e a rivalidade:
o ciúme do amigo do outro.


Abandonado no início do casamento, Angélica retomou a assiduidade de frequentar a casa de Consuelo, hábito que havia diminuído, para desconsolo da amiga, por conta do falecimento de dona Ivone, mas existia uma outra razão, tão bizarra quão aborrecida que começara no início do casamento: a presença de Evaristo, que insistia em acompanhá-la a quase todos os lugares aonde ela fosse, e nestas em particular; arriado numa rede, daí a pouco caía em ronco ruidoso em meio às conversas das amigas. Porém, a partir dessa data, ela o faria a sós, exigência acatada pelo marido a contragosto. (Ele acharia um jeito de vigiar a saída, amoitado nas cercanias metabolizando ressentimentos, desconfiando de Consuelo e as perfídias que devia urdir, assacando-o pelo sumiço do Tião zerê e influenciando Angélica para prejudicá-lo; responsabilizar a amiga de sua mulher por tudo de ruim que viesse dessas tertúlias o fazia sentir-se mais aliviado, atenuando a vergonha pela violência cometida contra sua mulher e encorajando a pretensão de reivindicar o direito de voltar a dormir no mesmo quarto da esposa de onde fora expulso e proibido de entrar a partir daquele evento. Mas num rincão secreto de sua alma, também palpitava um dos sentimentos mais penosos de se confessar, onde se entrelaçam o temor da perda, a inveja e a rivalidade: o ciúme do amigo do outro. Contaminando julgamentos, o ciúme tão doloroso como nocivo ao espírito, é um veneno que qualquer coisa serve para alimentá-lo e raro seu antídoto.


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Excitado de futuro e cachaça continuou se
arrastando fazendo caminho no mato rasteiro


O tenente Machado acompanha os soldados que vão substituir o plantão de alguns companheiros na trincheira perto. Os soldados, mal acostumados à tediosa indolência que as complicadas negociações em busca da paz entre os países impuseram, se sentem seguros e à vontade. Alguns deles ostentam garrafas de bebidas sem melindre. Um violeiro acompanha cantoria. Após a troca de sentinelas, todos se acomodam para passar as próximas horas ao redor da fogueira ou protegidos dentro da picada dando, de vez em quando, alguma atenção aos inimigos, tão perto, que ouvindo as injúrias proferidas, são rebatidas com igual teor.
Antes de tornar ao acampamento com os substituídos, Machado, de pronto, fica apreensivo pelos súbitos sintomas alertando-o de um principio de ataque e prefere se acomodar em qualquer canto da trincheira, esperando se restabelecer. Os soldados, perdendo-o de vista, logo o perdem também na lembrança e preferem animar o fogo do feixe de lenha, preparar viola, flauta e acordeão para olvidar a guerra e paciência para tolerar sua espera.

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alguns gritos femininos se sobressaem
entre rumores apreensivos


O acúmulo da tensão, manietada pelo autocontrole do casal durante tanto tempo, irrompe subitamente naquele dia: Na sala onde se encontram, a angústia e a inquietação a tornam claustrofóbica e faz o teto do sobrado parecer uma concha escura que abafa e dificulta a respiração do casal durante a longa pausa que sobreveio depois da decisão que Angélica acaba de proferir.
Ela de pé, junto ao armário-biblioteca, ele sentado no canapé ao lado de uma pequena mesa auxiliar, onde repousa garrafa de conhaque; Evaristo finge examinar atentamente o copo que segura, e depois de beber mais um gole, questiona o que ela pretende com isso.
Angélica: Responde que paz e isolamento.
Evaristo: Retruca indagando se há outro homem. Como ele suspeita.
Angélica: Diz que ele está sendo ridículo e infantil. Que ele sabe muito bem que não há ninguém.
Evaristo: Bebe longo gole de conhaque, parte da bebida escorrega pelo queixo e pinga no peito; diz que ridículo é pensar num sujeito, casada com outro.
(...)
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“Boa sorte, quero ver-te e querer-te,
vai-te embora coisa-ruim!”

É noite. Com um pé, Consuelo balança o berço onde o filho dormita, cantarolando uma balada de ninar, enquanto vai tecendo a palha das abas de um chapéu; os perfumes de acácia e de leite recém mamado pairam no ambiente.
Um rumor indefinido, provindo de fora da casa, chama sua atenção e silencia por uns segundos. Vai recomeçar a canção, mas o ruído ecoa mais claramente, ainda que desconhecido. Expectante, ela vai até a janela, aparta a cortina, abre a gelosia e espia para fora. As trevas do pátio mal permitem distinguir qualquer coisa, mas por garantia, murmura:
Não me deixes no escuro!
Minha alma é só de Deus
O corpo dou eu ao Mar.
Vai retomar o seu lugar, mas o estrondo da porta e a invasão de dois soldados, embarafustando-se pela sala, a paralisam de terror e em sussurro, balbucia:
Boa sorte, quero ver-te e querer-te,
vai-te embora coisa-ruim.”
(...)
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pulou as chamas da primeira fogueira
que atravessava seu curso

Amanda, que fora atrás de Rodrigo, escorou-se numa árvore a observá-lo sentado nas pedras do leito do arroio; sarcasmo no semblante e no tom de voz:
– Eita! Oficial nervoso este! Vai ficá por isso mesmo, no meio... – maliciosa, acrescentou – "desertor"? – ao silêncio aborrecedor do outro, protestou com altivez – Quer sabé? Tem batalhão disposto a roubar gado se eu fizer dessas coisas... Viu, soldadinho? – a taciturnidade do outro lhe acrescia a raiva – Vai vê, o oficial prefere é mulher dessas educadas e douradas das corte. Não é isso?
O "soldadinho" desertou novamente; apertando as orelhas entre as mãos, fechou os olhos, imaginando ter o poder de fazê-la sumir dali. Os abriu quando se seguiu um longo sossego; e ficou aliviado ao se ver sozinho; saiu da água e ao chegar na moita, constatou que a espada, o alforje e a pistola tinham desaparecido, junto com a mulher. Um princípio de ódio cegou-lhe a mirada. Apertou com força o nariz e a boca com os dedos, até lhe faltar ar. Sentou-se sobre a pedra e em suspiro soltou a raiva contida, e assim permaneceu, domando-a. Quando o sol já amarelava todo o ambiente com o entardecer, exalou a conclusão: esperaria escurecer para atacar.

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doía a orelha mordida e a ferida na barriga, mas o estudante
de medicina, fizera um trabalho a contento.


Ao despertar, o primeiro que viu: o homem, esticado a seu lado, e uma aranha negra avançando na direção de sua boca aberta.
O primeiro odor era de aguardente e sangue.
As primeiras dores que sentiu foram na garganta, e numa orelha.
O segundo que viu: o sangue saindo aos jatos de largo corte na garganta do sujeito, afogando a aranha e encharcando seu travesseiro.
Voltou a dormir.
Ao acordar pela segunda vez, o primeiro que viu: o homem estendido ao lado, e a aranha sumindo dentro da boca aberta dele.
O primeiro que sentiu: a dor na orelha direita.
O primeiro que ouviu, foram os gritos remotos de um sujeito, chamando seu nome.
Voltou a dormir.

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Consequentemente a alegria o alimentava,
dissipando a fome.

Espósito comentou que Duque de Caxias reduziria o numero de oficiais “dispensando todos aqueles julgados incapazes de prestar serviço eficiente”, como o indulgente médico deduzira a origem dos sintomas narrados, discretamente o fez constar nessa lista, pretextando uma moléstia qualquer que justificasse sua total incapacidade. Deveria retornar ao Rio de Janeiro, junto com feridos e outros inabilitados. Machado não discutiu, sabia que sua aparência e conduta não sustentavam qualquer apelação, se tentasse, mas agora não mais temia ter de se sujeitar às inclemências de uma inquisição, que ainda devia estar esperando por ele, no Rio. Do contrário, o tal delegado não estaria no acampamento, também atrás dele, como zeloso sabujo.
Nos dias que antecediam a viagem, Machado soube por Espósito, que teria direito a um faxineiro assistente, como era praxe, para acompanhá-lo e auxiliá-lo na viagem.
– Este preto aqui, é valente, mesmo avariado. Mas já tá bom. Diz aí teu nome, negro coxo.
– Sebastião. Mas me chamam de Tião.
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Essa medonha guerre qui semblait jamais fin!

Conceição ficara receosa ao saber que Nhá Baronesa resolvera aceitar o pedido de casamento daquele conde português que praticamente se instalara na casa de tanto frequentá-la.
E amedrontada quando ouvia o namorado prometer levar a baronesa para seu castelo em Portugal.
E apavorada quando a patroa aceitara alegremente ambos os convites.
Em pânico ao escutar a patroa discursar para o conde, durante dias, que cansara de lutar para construir a maternidade e as vicissitudes dessa batalha perderam o sentido ao descobrir que em verdade tratava-se de uma quimera de seu falecido marido;
(...)
Conceição chorava escondendo sua aflição em qualquer canto que ninguém a visse. Até a ocasião de estar servindo o jantar ao casal, um inesperado soluço fez a bandeja lhe escapar das mãos como as lágrimas de seus olhos e todos se derramarem sobre a mesa, para susto do casal.
Pediu desculpas por não ter tido forças para esconder sua aflição e correu para o quarto.
Naquela noite, batidas na porta a acordaram. Atrás da porta que abriu temerosa: Sinhá Claudia abraçada com o conde português, quase nus e bêbados de quase cair.

A janela aberta deixou o dia iluminar a alegria de Conceição se manifestando em cada dobra dos sorrisos que se sucediam de minuto em minuto enquanto preparava a mala com seus pertences.

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duas vezes viúva: uma de marido enterrado
e outra de homem esperado


Antes incógnito e anônimo, o teto do sobrado a cinge igual ao de um templo sinistro, e a solidão de dias vazios, perambula sob sua sombrosa abóbada. Consuelo e Tiãozinho, seu amado afilhado, já não lhe bastam. E já não sente mais a presença de sua irmã, Amanda, por quem chorou compulsivamente, sem encontrar a razão pelo efeito funesto de sua ausência, como se fosse a perda que faltava para o total desamparo que se seguiu quando soube do caso de Fernando e a baronesa. Fora o desmoronamento de uma construção cujos alicerces a esperança infundada enterrara nos recônditos de suas ilusões.
*

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2ª PARTE: Os mercenários.

Nada tinha da imagem gloriosa das estampas
reproduzidas no abandonado palácio de Assunção


(...)
Sua nomeação provara que os Estados Unidos tinham interesse na sobrevivência política do pequeno David sul-americano em luta contra o Golias, a monarquia brasileira.
McMahon aceitara o convite com uma profunda convicção de que tal era realmente o caso e que ele tinha um papel a desempenhar.
O ministro plenipotenciário dos Estados Unidos, General Martin Thomas MacMahon, após ler mais uma vez o discurso de boas vindas desde que o recebera e ouvira de viva voz do Presidente, havia quase seis meses – proferido com emocionante eloquência e expressado no idioma guarani que parecia preferir ao espanhol –, dobrou-o cuidadosamente, devolveu-o ao envelope que ostentava o timbre oficial da República do Paraguai e o juntou com outros documentos na pasta diplomática, ultima revisão de seus pertences para a partida no dia seguinte. Terminou de arrumar sua elegância para o convite ao jantar com o casal López, el vicepresidente Sánchez, a mãe, as irmãs, os filhos e oficiais mais íntimos, mas, diferençado de outras ocasiões, o motivo desta era distinto: sua despedida do Paraguai.

(...)
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de prostitutas de todas as idades e mutilados
de trincheiras, seu perseguidor se destacava

Assunção, Paraguai, 1869
As tropas da aliança entraram na capital, Assunção, encontrando-a quase em ruínas e abandonada por uma parte da população que acompanhara seu presidente, Francisco Solano López e o que sobrara do exército, fugindo dos aliados em direção às Cordilheiras.
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não se importava em acompanhar algum homem
às choupanas para entretê-lo por uma noite

Dona Margô utilizara todo material disponível que lhe caíra nas mãos para mandar construir mais uma cabana, em verdade um casebre modesto nas dimensões de um cômodo, periclitantes colunas com teto de palha e a mobília de uma cama, mesa e algumas cadeiras. Erguido em meio aos dois, mais antigos, nos fundos da casa, situada nas imediações da Calle del Atajo (próxima o bastante do palácio de Solano López para, na ocasião de ser bombardeado pelos navios brasileiros, dona Margô ter a aterradora convicção que a terra e a engoliria junto com residência e choupanas); eram construções alugadas por hora ou por dia, a funcionários públicos e certa porção da população hispânica menos rigorosa com a moral dos costumes; tudo devidamente camuflado – desde que admitir a existência de bordéis e correlatos era inadmissível transgressão num país onde “o solo sagrado com suas asas um anjo cobriu”, como jurava o hino pátrio –, com as quais ativara o faturamento do salão de baile, onde se dançava maxixe entre uma polca e uma mazurca e saboreavam-se quitutes e bebidas depois de uma valsa; o sigilo era garantido pelos subornos aos espiões do governo que existiam em cada quarteirão da cidade – os mesmos que a saquearam dias antes da entrada das tropas aliadas.
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encostado numa parede, as figuras sórdidas
o rodeiam em uma ciranda grotesca

Charles parecia um fantasma reluzindo nas sombras da noite de Assunção, vestindo o paletó branco, surrado, mas limpo, que sempre levava na bagagem para onde fosse e não vestia desde que começara aquela guerra.
– Maluca!
No transcorrer desse dia não fez muito esforço para avisar seu novo sócio da transação com a velha Margô; parou numa esquina, fez um aceno e Edward achegou-se, ouviu seu curto relato e se despediu com um “Até breve”.
Às nove da noite em ponto, Charles chegou diante da residência de Margô, ia bater na porta, mas esta se abriu um segundo antes.
– Estava lhe esperando, Inglês. Pode entrar, a casa é sua. – solícita e maquiadíssima Madame Margô, comumente com os lábios pintados de carmim, sua marca reconhecida, ostentava agora uma peruca Luiz XV, que encontrara entre os pertences de um juiz morto de apoplexia numa das suas cabanas em noite de orgia, fato que mereceu poucos comentários ou investigações por parte da honrada família do digno membro do Poder Judiciário do Paraguai.
– Seu amigo não veio com o senhor?
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Se o imperador do Brasil protesta junto
ao presidente dos Estados Unidos


Martin Thomas MacMahon, chegando do quartel geral onde o governo provisório da Tríplice comandava, entrou na sala acompanhado por Walt, e se livrou da capa, jogando-a em qualquer lugar.
– Quanto aborrecimento! Esses comandantes boçais me irritam com suas maneiras e seus falatórios capciosos sobre minha missão diplomática. O que esperavam? Eu apenas obedecia Washington! Os interesses dos Estados Unidos deviam ser representados onde estivesse o Paraguai. E por enquanto López era e ainda é “o” Paraguai, mesmo nos cafundós das cordilheiras. Era minha função segui-lo. Agora, se o presidente dos Estados Unidos, que tem promovido e assegurado o direito de voto de nossos ex-escravos do sul, muda de posição e acata o protesto do único monarca da América do Sul, um escravista imperialista e resolve me tirar daqui, eu devo obedecer, mesmo contra todas as contradições! E como não posso sair daqui voando, eles terão que me aturar até meu navio partir!
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podia ser ideal para se esconder com cavalos e tudo
a esperar pelo momento apropriado


Acompanhado por Jacinta sobre a qual não desgrudou os olhos no trajeto, o soldado chegou à porta da cabana que ela assinalou, retirando-se em seguida. O militar, de pé defronte à porta entreaberta, observando o caminhar da moça, sobressaltou-se com a ordem gritada provindo de seu interior:
– Vamos entrar, soldado!
E obediente foi entrando e pedindo: – Liceeença... – Ao ver Charles sentado ao lado da mesa, sobre a qual repousavam garrafa de bebida e travessa de quitutes, seu sorriso se alargou; descansando o fuzil a seu lado, comentou cobiçando a recepcionista.
– China mais bonita aquela! Rareza de se ver em Assunção. É uma das moças de Madame? Ouvi tanto falá dessa Margô e suas chinas!
– Então recebeu meu recado. – cortou Charles.
– Recebi, sim. Meu companheiro avisou. O João.
– Você me conhece?
– E não hei de? É soldado das estranjas. Mister Charles. O João não precisou alargar a conversa que já fui respondendo. “Só dizer onde, e deixa o sargento por minha conta que minha disposição é toda”. Ele não pode vir. Mandaram prum entrevero qualquer.
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cumprir sua jurada desforra, e manter a compostura,
para não arrasar o golpe bem no início


Assomando no cabeço das serras, a claridade do alvorecer reacendeu a expectativa e Charles sentiu a perna esquerda esticar numa contração súbita. Era a abominável cãibra que uma posição desconfortável sempre lhe provocava, como a de estar sentado na charrete estacionada, havia horas, no pátio dessa casa inabitada, situada num bairro periférico de outrora elegantes residências, atualmente a maioria em ruínas e adjacente à vigiada e intacta morada temporária de Martin MacMahon.
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tinha certeza tratar-se de um espião
de López ou de Washington

No quartel geral montado numa das mansões que cercavam o palácio de López, MacMahon negociava novamente com o coronel a confirmação de sua partida de Assunção, num navio programado para zarpar no dia seguinte e – como lhe informara Walt –, se perdesse essa chance, teria de esperar mais uma semana por outra embarcação. Conhecimento este não confirmado pelo coronel que estava na sua frente.
– Lhe esperei a madrugada toda, Coronel. Tinham me avisado que o senhor estaria à minha espera. – com olhar furibundo, mirou Walt num canto do recinto, que fingia fazer anotações e amofinado pelo suor que lhe brotava do corpo inteiro, não somente pelo calor abafado que a essa hora da manhã já invadira o local, mas também pela aflição de descobrirem o engenho inventado para tirar MacMahon do casarão.
– Nós somos filhos de Deus, Senhor embaixador! Dormimos e descansamos como todo mundo. E não sei de onde tirou essa ideia de estarmos de plantão de madrugada a lhe esperar. – Resmungou o recém acordado e mal-humorado Coronel ao ser informado da presença de MacMahon no seu gabinete; por sinal, um diplomata que ele tinha certeza tratar-se de um espião de López ou do governo de Washington. Ou de ambos. Todos seus inimigos.
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os homens exclamavam admiração à
medida que lhe passavam pelas mãos dezenas de lingotes de ouro


Edward descerrou a lona que cobria a equipagem; assim como Walt descrevera, lá estavam os baús em forma de caixotes e arcas de diversos tamanhos. Os dois homens se entre olharam. Seus formatos e materiais usados na feitura variavam entre si, mas seu peso os assemelhava, o que Edward comprovou ao sopesar alguns dos mais de vinte que se acumulavam, um sobre os outros, traçando duas fileiras.
– Primeiro os sem tranqueta. – explicou Edward a João que intentava abrir um deles. – Deixa que eu faço isso, vá trazendo mais mochilas!
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e todos eles entraram, arrasando
a cerca viva que ajudava dividir o pátio.

Anoitecia, e Madame Margô, sorvendo o mate que Jacinta acabara de lhe servir, lembrava do charuto do inglês que esperava por ela na lata, conjeturando a respeito daqueles três caras, que deviam estar metidos numa jogada pesada, e suja. Mas não como julgara no início; algo mais grave que a divertida pouca-vergonha por ela imaginada. E estava disposta a descobrir o mistério; afinal, aprendera que todo segredo descoberto, de certa forma, acaba por beneficiar o descobridor. E ela sempre foi uma descobridora. Começando por saber o que descobrira Jacinta do inglês perneta.
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enquanto apreciava a ponta de seu sapato
sujo de terra paraguaia

Distante dali, num subúrbio de Assunção, um embaixador norte-americano desmontara rapidamente, abandonando um tenente e cinco soldados, ocupados em examinar os corpos encontrados no pátio da frente da mansão; alcançara o meio da sala e ao avistar os sinais de invasão, correra para o quarto e descobrira o que deduzira ao ver os cadáveres na entrada da casa. Com aparente empáfia, fechara a porta, e, trancando-a, guardara a chave no momento do sargento adentrar agitado, anunciando:
– Mataram meus homens! Houve uma invasão, senhor?
– Sim. Porém, mal sucedida, sargento. – mentira o americano – Seja quem for o invasor, se deu mal. Não atingiram seus objetivos. Sinto pelos seus homens, Tenente, mortos no cumprimento do dever.
– Obrigado embaixador. Tem certeza que não falta nada?
– Tenho. – remordera MacMahon, desejando encontrar-se naquele instante no convés de um barco a meio caminho para os Estados Unidos. Ou melhor, Paris.
– Bem, sendo assim, vou preparar um relatório pro coronel. Levarei os corpos dos combatentes abatidos. Deixarei alguém com o senhor para tomar conta.
– Acredito não ser necessário. Mas agradeço-lhe, tenente.
– O coronel me alertou que o senhor irá precisar de escolta e ajuda com a equipagem.
– Isso é verdade. Amanhã zarpará o navio. Pode providenciar para nos levar ao cais, tenente?
– Às ordens, senhor embaixador. Providenciarei logo o necessário. – Batendo os tacões o homem dera meia-volta e saíra a passo corrido. Lá fora, berrara algumas ordens.
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E puxando da cintura a faca, depositou-a sobre a mesa.

As repletas mochilas, alforjes e bolsas, estavam distribuídas pelo chão da choça. Sentados ao redor da mesa, Edward e Charles, cansados, mas satisfeitos, bebiam. Podiam ouvir Jacinta e a moça branca, lá fora, cuidando dos cavalos.
– Uma dessas garotas parece interessada em você. Quero dizer... Não apenas no seu dinheiro. – brincou Edward.
– Ela me agrada. E não é pelo seu dote. – gracejou Charles, satisfeito.
Lá fora as duas moças ouviram as gargalhadas dos homens e Jacinta ficou contente, alegrando também a Blanca, mesmo sem nada entender. Raro de ouvir nesses homens, de maneiras ásperas e agressivas. Mas Jacinta preferia assim que aos outros, fanfarrões e tagarelas só de lorotas. Com o inglês se considerava protegida. E sentira-se feliz com ele na cama. E mentira para dona Margô ao mencionar que tinha sido bruto.
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se deleitava com um charuto,
lançando baforadas

Martin MacMahon encontrava-se no convés superior do navio que se afastava lentamente do cais do rio; escoradas no corrimão, suas mãos sustentavam o corpo cabisbaixo. E considerou: “Quem irá saber do que se passou? López? Elisa? Quem mais souber, certamente o traidor Walt, jamais irá falar.” E alisando o bigode, desafiou:
– And then? who will with this shit care? Fuck! I don't give! – em seu idioma natal o deboche soava mais determinante e parecer seu sorriso menos acerbo.
De algum lugar do cais, o embaixador plenipotenciário era observado por seu ex-assistente aleatório, Walt Charlton, encostado numa charrete, ao lado de Edward, Charles e Jacinta, que nada entendia ouvindo as risadinhas entre dentes dos três; para não ficar de fora, também ela quis ser feliz e enlaçando-lhe a cintura, sorriu para Charles, que lhe retribuiu.
Junto a Blanca, segurando as rédeas da charrete, sua Excelência, Dona Margô, se deleitava com um charuto manchado de carmim na ponta, lançando baforadas que lhe enevoavam parte do rosto maquiadíssimo e a peruca do supremo Luiz XV.

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“Últimos momentos do ditador paraguaio, Francisco Solano López. Testemunho de quem participou da execução.”

MacMahon terminou de beber seu café, abriu uma gaveta e retirou o jornal algo surrado pelo uso e o tempo e, como numa liturgia matinal, retomou a leitura do periódico portenho em língua inglesa The Standard:

...e na fuga foi alcançado e ferido mortalmente por um golpe de lança. O ditador caiu nas margens do arroio Aquidabán com a espada na mão...
‘Me chamo Francisco Lacerda, um seu criado a servi-lo. Chico Diabo, pros tementes’
Desta forma se apresenta nosso entrevistado e enquanto nos dá sua atenção, podemos ouvir vozes cantarolar a gloria alcançada pelo responsável direto da morte de Francisco Solano López, o ditador do Paraguai, repetindo o estribilho.
‘O Diabo Chico Diabo,
ao Diabo Chico deu cabo’

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Martin MacMahon dobrou cuidadosamente o telegrama e guardo-o numa gaveta junto ao jornal; sobre eles, colocou a foto emoldurada de Elisa. Repousou seus olhos nos dela e na letra elegante da dedicatória tantas vezes lida e relida, onde gratidão e eterna amizade garantiam estar a esperá-lo a qualquer momento. Fechou e trancou a gaveta, observou a chave detidamente, levou-a a boca, aparou os bigodes com ela e apertou-a contra seus lábios, depois guardou-a no bolso do colete; a seguir, abriu outra das gavetas do escritório e tirando um maço de notas, que contou rapidamente, introduziu-as num envelope que jogou sobre a mesa, levantou-se e chamou:
– Johnson!
– Às ordens Marechal!
– Mande Emiliano López entrar.
– Sim senhor.

FIM

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