sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Lendo conto de Miguel Fernandez: A Bicicleta de Suzana

Para: Miguel Fernandez
Assunto: Read a new story from MiguelFernandez6


MiguelFernandez6 just posted a new story titled A bicicleta de Susana

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suzana

A bicicleta de Susana


Suzana dos Santos Schneider era loira, gordinha clara, olhos azuis, herdados do pai (dentista alemão, jurara a mãe, que fora sua assistente e conhecera a cadeira dos pacientes sem abrir a boca, só as pernas, e devia ser verdade, porque ela era mulata.) Suzana andava pelas ruas do bairro, para onde tinha mudado recentemente, numa bicicleta cor de rosa, sacudindo o rabo herdado da mãe, um no selim e o outro, de cavalo, no cabelo. Todos os dias, sempre à hora da sesta, quando as ruas do bairro estavam quase vazias, passava como se deslizando, graças à força de um empurrão invisível dado no início da rua em declive, pela porta da casa de Beto que sentava na soleira da porta, a bocejar a modorra pós almoço.
Ao passar, manobrando o guidão com a jovial destreza de seus aparentes quinze anos, ela olhava com seus olhos azuis para ele com a brevidade que o recato permitia e logo se perdia na esquina próxima. Minutos depois de contornar a quadra, voltaria a passar e repetir seu olhar, às vezes acrescido de um sorriso tão breve que Beto duvidava de tê-lo notado. Mas seu coração o via, provocando o palpitar agitado da ‘quase’ certeza. Mas sua covardia e a o ‘quase’ lhe manietavam iniciativas.
Uma semana nesse ir e vir e ainda nem sabia onde ela morava. Mas sabia a hora do dia em que ela desapareceria pela esquina, para retornar só no dia seguinte, também na sua hora.
E o bardo que havia nele a imaginava virgem e, em versos escritos em caderno, nua e sua.
E o enamorado lhe sugeria maneiras de chegar nela: jogar-se na frente da bicicleta quando ela passa-se! Jogar uma flor em sua direção! Um poema. Um beijo! Um grito!

Na segunda volta do décimo dia, Suzana, o destino, ou ambos, resolveram promover o encontro: O pneu da bicicleta rosada murchou a poucos metros dele. Desamarrando as algemas da timidez, ele chegou-se perto do acidente, e nem chegou a perguntar para ela:
“– Furou o pneu?”
Inclinada ao lado da bicicleta, examinando a roda, ela levantou o rosto vermelho de exercício e iluminado de olhos azuis, e disse:
– Parece que o pneu furou. – ao sorrir, seus lábios grossos deixaram à mostra pequeninos dentes e seu decote, pequeninos peitos juvenis. – Vou ter de andar até em casa. Resolveu ela, erguendo-se. 
– Deixa eu te ajudar. – propôs ele e, segurando o guidão, se apresentou: – Meu nome é Beto.
– O meu é Suzana. – disse ela, deixando-o conduzir o veículo a seu lado.
 “Pronto” suspirou Beto, com a alegria exagerada da mocidade.
Na rua atrás do mesmo quarteirão, ela parou à porta de uma casa.
– Pronto. Chegamos. – disse ela. – Obrigada pela ajuda.
– Tem como arrumar o pneu? – perguntou ele, solicitante.
– Tenho um estepe aqui em casa.
– Posso trocar para você agora. – disse Beto, o diligente.
– Não tem pressa. – disse ela retomando o guidão e roçando a mão dele. – Mas, pode ser. Quer entrar? – convidaram os lhos azuis.
– Claro. – respondeu Beto, o sorteado.
– Vem comigo. – Ordenou a moça, abrindo a porta e entrando. Ele foi atrás, empurrando a bicicleta. No pequeno quintal, pendurado na parede, o estepe bendito. Suzana logo foi abrindo um pequeno baú e dele tirou algumas ferramentas.
– Estas devem servir. – disse ela.
– A chave ou um alicate bastam. – Suzana lhe estendeu a de fenda e ficou bem perto dele, a observar.
Manipulando parafusos e excitação pelo calor que o hálito perfumado dela lhe provocava, Beto distraiu-se e a chave de fenda foi lhe rasgar um dos dedos; o sangue brotou e pequenas gotas caíram no chão. Suzana, condoída, disse:
– Ai! Coitado. – Segurando-o pelo braço, ordenou: – Vamos limpar essa ferida, vem comigo.
Ele foi atrás dela, e atravessando cozinha e sala, ela explicou o sossego da casa. – Minha mãe esta no serviço. – Na porta do banheiro ordenou: – Entra aqui.  – Abrindo o armário espelhado, mostrou remédios diversos: – Minha mãe trabalha num posto e traz monte de remédios. Deixa vê esse dedo. – Beto estendeu a mão. – Tadinho. – sorriu ela e lambeu a ferida. O resto do sangue do corpo dele provocou-lhe uma ereção instantânea que não conseguiu segurar, nem esconder. – E esse aí? Também quer remédio? – zombou ela, e riu baixinho do rubor dele. – Primeiro este aqui. – E puxou o braço até ele encostar o corpo inteiro atrás dela, que abriu a torneira e lavou o dedo machucado por um minuto, no qual a ferida ardeu e o “esse aí” doeu de inchaço. – Não queremos uma infecção nem hemorragia, certo? - E lambuzou o dedo com uma pomada e a seguir enrolou gaze que prendeu com um esparadrapo. – Pronto, assim minha mãe cura meus machucados. Como este aqui! – E levantou a saia até o inicio das coxas e da calcinha para mostrar o joelho e a cicatrização de uma pequena lesão. O priapo de Beto latejava mais que o dedo enfaixado e tentando esconder pôs a mão sobre o volume da calça,. – E esse aí? Quer algum remédio? – sorriu Suzana.
– Sim. Não. – disse ele arquejando um sorriso estúpido.
Tadinho. Deixa ver esse dodói. – Beto a deixou lhe afastar a mão que cobria a braguilha e ficou imóvel. – Ta com medo? – brincou ela. – Não vai doer nada. – E acariciou o vulto com carinhoso desprendimento. O embaraço de Beto contrastava com a licenciosidade dela e sem precisar desnudar o “tadinho” ele sentiu o gozo molhar a cueca. Sufocado pela vergonha que lhe tirara o fôlego, saiu do banheiro quase correndo. Enquanto atravessava a sala e a cozinha, ouviu a risada dela ecoar no banheiro. Saiu à rua e em dois quadras, entrava em sua casa e, num pulo, em seu quarto. E até a noite, deitado na cama, relembrou tudo em detalhe e, imaginado o que não acontecera, molhou o lençol algumas vezes, até o sol raiar.

Transido de embaraço pelo que poderia ter acontecido, sem aparecer na porta da casa por dois dias, escreveu e reescreveu bilhetes pedindo desculpas e prometendo mundos e fundos de amores devidos, por dar e por ter.

No terceiro dia foi sentar-se na soleira da porta, dobrando e desdobrando, lendo e relendo o bilhete, aguardando ela passar.
Mas nesse, e no dia seguinte, Suzana não apareceu na rua.
Só a ferida no dedo a fazia presente.

A angustia do mistério e do desejo lhe insuflaram a valentia que o levaram em direção da casa dela. Ao chegar à esquina do quarteirão, viu Suzana acompanhada de um rapaz que, segurando a bicicleta com um pneu murcho, entrava na casa atrás dela.
A ferida no dedo latejou. Vivaz.

©Miguel Angel Fernandez

vai viajar?

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A traição (?) de Capitu.




Fragmento do romance "Dom Casmurro", de Machado de Assis: A xícara de café e Segundo impulso. Começa com o doutor Bento Santiago no auge de paranoia e autocomiseração, convencido de que seu filho, o pequeno Ezequiel, é fruto do caso adúltero de Capitu com seu melhor amigo, Escobar, a essa altura já falecido. Está sofrendo tanto que anuncia a intenção de se matar. Mas Machado não deixa dúvida de que, se traição houve, o corno covarde a mereceu.
O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri-la. Até lá, não tendo esquecido de todo a minha história romana, lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e, para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso; tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos sentimentos do filósofo, para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância é não ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de Plutarco, nem ser dada a notícia nas gazetas com a da cor das calças que eu então vestia, assentei de pô-lo novamente no seu lugar, antes de beber o veneno.
O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara a xícara. Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive ânimo de despejar a substância na xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona inocente; o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o ânimo que me ia faltando; lá estava ele, com a mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe…
"Acabemos com isto", pensei.
Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e o filho saíssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:
– Papai! Papai!
Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi belo e trágico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-me recuar até dar de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta dos pés, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:
– Papai! Papai!
*
Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo este livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.
– Já, papai; vou à missa com mamãe.
– Toma outra xícara, meia xícara só.
– E papai?
– Eu mando vir mais; anda, bebe!
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio… Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doudamente a cabeça do menino.
– Papai! Papai! – exclamava Ezequiel.
– Não, não, eu não sou teu pai!

Fernão Mesquita: “São Paulo resistiu sozinho a Getúlio; São Paulo vem resistindo quase sozinho ao PT”


(Foto: Arquivo/AE)
Getúlio Vargas adiou a convocação de uma Constituinte e nomeou títeres como governadores dos Estados até que São Paulo se levantasse contra sua ditadura não declarada, a 9 de julho de 1932 (Foto: Arquivo/Agência Estado)

Texto de Fernão Lara Mesquita publicado no jornal O Estado de S. Paulo

São Paulo comemorou neste Julho passado o 82.º aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932, que muito pouca gente, no Estado e no resto do Brasil, sabe o que foi. É impróprio, aliás, usar verbos no passado para tratar deste assunto, pois a luta de 1932, que começara pelo menos 50 anos antes com o Movimento Abolicionista, que desaguou na República e se confunde com a história do jornal O Estado de S. Paulo, é exatamente a mesma de hoje.
Gira em torno da seguinte pergunta: onde se quer instalar a sociedade brasileira emancipada, no campo da civilização ou no da barbárie?
No Estado de Direito, com a lei igual para todos, ou nas variações do caudilhismo populista, onde fala quem pode e obedece quem tem juízo?
Numa meritocracia, em que só a educação e a dedicação no trabalho legitimam a diferença, ou no sistema em que a cooptação e a cumplicidade com a corrupção são os únicos caminhos para o poder e para a afluência?
O Movimento Abolicionista é o primeiro na história do Brasil a surgir nas ruas, não nos palácios, e a tomar o país inteiro numa avassaladora mobilização cívica. Nasceu sob inspiração direta da Revolução Americana.
Muitos de seus principais líderes brancos e negros frequentaram as mesmas "lojas maçônicas" lá, nos Estados Unidos, onde a elite do Iluminismo fugida do absolutismo monárquico europeu, regime sob o qual viviam o Brasil e o resto do mundo de então, iniciou o debate que resultaria no desenho das instituições da democracia moderna.
Tratava-se de uma humanidade escaldada por 2 mil anos dormindo sob o risco de sua majestade acordar de mau humor e mandar torturá-la até a morte sem ter de dar explicações a ninguém.
Para garantir que nunca mais fosse assim, aqueles conspiradores estabeleceram os princípios fundamentais da democracia que até hoje não se instalou por aqui: o império incontestável da lei, inclusive e principalmente sobre os governantes; a vontade popular, democraticamente aferida, como única fonte de legitimação dessa lei, e o mérito no trabalho como única fonte de legitimação do poder econômico; a descentralização do poder para garantir a fiscalização mais direta possível dos representados sobre os representantes, concentrando nos municípios todas as decisões e os serviços públicos que pudessem ser prestados no âmbito deles; nos Estados, apenas as que se referissem aos assuntos que envolvessem mais de um município; e na União, só as que não pudessem ser resolvidos por essas duas instâncias, mais as relações internacionais.
Para reduzir ainda mais o espaço para que as tentações do mando não produzissem os efeitos que sempre produzem no caráter dos homens, determinou-se que cada uma dessas instâncias de governo fosse dividida em três Poderes autônomos e independentes entre si, uns encarregados de fiscalizar os atos dos outros.
Não foi à toa, portanto, que os brasileiros oprimidos que testemunharam esse verdadeiro milagre se tivessem encantado a ponto de dedicar sua vida a fazê-lo acontecer também no Brasil.
Foi em nome desses princípios que nasceu a República. E foi para preservá-los que foram feitas a Revolução de 1930, a Revolução de 1932, a redemocratização de 1945, o contragolpe de 1964 e a redemocratização de 1985.
"Getúlio criou os sindicatos pelegos sustentados pelo estado; Lula e o PT são o produto direto deles" (Foto: Arquivo/AE)
"Getúlio criou os sindicatos pelegos sustentados pelo estado; Lula e o PT são o produto direto deles" (Foto: Arquivo/AE)

Getúlio traiu, como Lula, a bandeira da "ética na política", que levou os dois ao poder, em 1930 e em 2002. Getúlio, adiando a convocação de uma Constituinte e nomeando títeres como governadores dos Estados até que São Paulo se levantasse contra a sua ditadura não declarada, em 1932; Lula, aliando-se a todos os "carcomidos" da política, que se elegeu atacando, para se perenizar no poder.
Foram 87 dias de uma guerra desigual contra os Exércitos da União. São Paulo foi derrotado militarmente, mas teve uma vitória moral tão indiscutível que Getúlio, depois de devolver o governo do Estado a lideranças paulistas (na pessoa de Armando Salles de Oliveira), sentiu-se constrangido a convocar finalmente a Constituinte que deu ao Brasil, em 1934, a única Constituição verdadeiramente democrática que o país teve.
Tão democrática que o caudilho não conseguiu conviver com ela e "fechou" o país, em 1937, impondo a sua própria lei e reinstalando a ditadura. 

Read a fragmento de romance



MiguelFernandez6 clicando na imagem a new story titled a descobriu: de cócoras num recanto escuro do cômodo.

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ENC: É possível se desligar?


"Em um mundo tão acelerado, (…) você consegue se desligar? (…) Acho que a profundidade de atenção exigida por um livro é muito significativa e uma alternativa ao nosso modo de vida."

Tom Rachman, escritor anglo-canadense, no jornal O Globo; em seu novo romance, The Rise & Fall of the Great Powers, a protagonista prefere viver desconectada do universo digital

Respostas grosseiras para perguntas idiotas

 Autor: sergiorodrigues

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Chuck Wendig (foto). , escritor americano, romancista, roteirista e designer de games, autor de livros como Blackbirds e Double Dead, conseguiu fazer uma crítica feroz  de uma certa mentalidade de autoajuda e de um certo visgo corporativo que vêm se infiltrando há anos, traiçoeiramente, no mundo florescente do aconselhamento literário.
A seguir, alguns destaques:
Como eu faço para escrever?
Eu não sei como você faz para escrever. Eu sei como eu faço para escrever. E o que eu faço é enfileirar um punhado de palavras e juntá-las em frases, depois eu junto as frases em parágrafos e empacoto os parágrafos em páginas, páginas em capítulos, capítulos numa história completa. (…) Faço isso pouco a pouco, todos os dias, até terminar, e mesmo quando termino não cheguei ainda a terminar, porque escrever é reescrever é reescrever…
Como eu encontro tempo para escrever?
Você não encontra tempo para escrever. Você faz esse tempo. Você o rouba das mandíbulas de seja qual for a besta temporal que tenha seus minutos e suas horas entre os dentes arreganhados.
Quanto tempo eu devo levar escrevendo meu livro?
Costuma levar algo entre uma hora e uma era glacial. Caramba, eu sei lá. Cada livro tem seu próprio relógio. Sim, eu sei, esta é uma resposta idiota e óbvia, mas é a única resposta possível.
Como eu faço o marketing do meu livro?
Não tenho a menor ideia. Escritores devem ser bons de escrita, não de marketing. Eu não fui treinado nessa disciplina. Acho que perguntar a um escritor como fazer marketing é como lhe perguntar como plantar vagem ou desmontar um chimpanzé mecânico descontrolado.
Como eu construo minha marca?
Você, bem, quer dizer – ah, por misericórdia, não! Bleh. Blargh. Uoashh. E outros ruídos nojentos. Eu tenho um número circense inteiro sobre marcas, que você certamente já viu antes, mas vou apresentá-lo mais uma vez. É o seguinte: uma marca é aquilo que se põe na vaca para assinalar propriedade. (…) Quem quer ler um livro escrito por uma marca? (…) Seja uma pessoa. Encontre sua voz. Deixe sua voz ser aquilo que o identifica. Resista à criação de uma marca e a outros rótulos corporativos ou gerenciais. Seja a melhor versão de você que puder ser. E escreva a porcaria do melhor livro que puder escrever.
Quais são as tendências mais quentes do momento?
Eu não sei, porque não ligo para isso, e você também não deveria ligar. Mais uma vez: este é provavelmente um mau conselho do ponto de vista dos negócios, mas é um excelente conselho criativo. Danem-se as tendências.

Ebola na América?

 Autor: Mr X
Assunto: Ebola na América?

Bem, existe ao menos uma vítima do Ebola que está agora nos EUA. É um médico que contraiu a doença na África e foi trazido para o hospital da Emory University para tratamento. Uma outra paciente chegará na semana que vem.

O tom da reportagem é um pouco assustador. Não por criar pânico, ao contrário: mas por tanto insistir que não há perigo algum de contágio, que as instalações do hospital são super-modernas, que o isolamento dos pacientes será total, que o contágio seria difícil pois só acontece na fase terminal 'quando o paciente não se mexe muito', etc etc. Enfim, tanto insistem que "não é nada" que terminei me apavorando.

Seria o famoso plano illuminati para espalhar uma doença contagiosa a nível mundial, reduzindo em 90% a população mundial? Não, não creio. Porém, as razões para trazerem os pacientes para os EUA talvez não tenham sido bem pensadas, já que o risco de algo dar errado sempre existe.

De qualquer modo, na era da globalização, não é preciso trazer pacientes em um avião militar. Turistas ou imigrantes de Serra Leoa podem trazer o vírus para qualquer país do mundo em uma viagem, repetindo o roteiro do filme "Epidemia".

Uma das dúvidas é a seguinte: porque tantas doenças, antes desconhecidas, surgiram nos últimos tempos? Aids, Ebola, SARS não existiam antes das últimas décadas. Seria a mera mutação de vírus? Seria o crescimento populacional excessivo, e a convivência em mega-cidades? Ou seria algo mais.

Sorte tem o brasileiro, que não precisa se preocupar: "Risco de Ebola propagar-se para o Brasil é baixo". É o Ministério de Saúde que "agarânti"!


Conselhos literários fundamentais

Autor: sergiorodrigues 
I
Odeie o conforto. Se estiver concentrado demais na história que está escrevendo, ligue a TV, entre num bate-papo virtual. Caso as palavras continuem a lhe jorrar dos dedos, ponha uma música, desligue o ar condicionado, abra a janela para o berreiro de freios, buzinas e motores. Sinta-se incomodado: retarde ao limite do desastre – ou mesmo, havendo disposição e necessidade para tanto, além dele – a hora de ir ao banheiro. Morra de sede, chegue a passar fome. Brigue com a sua mãe. Mande confeccionar para sua cadeira de escritório XTZO-3000 (com amortecedor inteligente) um magnífico assento de tachinhas medievais. Boicote-se: se escrever umas tantas páginas-telas que lhe agradem em particular, dê um jeito de perdê-las, negando-se como um tonto a salvar o arquivo ao fechá-lo. E então esprema a memória para reproduzi-las igualzinho, vírgula a vírgula, exceto por uma palavra que já não achará mais e cuja ausência, se tudo der certo, vai torturá-lo por horas e horas de trabalho ou trabalho nenhum, pois não se pode chamar de trabalho o tumulto de pensamento que o tomará então, o céu a estridular como se fosse partir ao meio e o computador berrando mais do que a cidade e a TV juntas jamais sonharam berrar. Nesse momento, se as instruções tiverem sido seguidas corretamente, a linguagem estará passando por você depressa demais para ser captada, zunindo, turbilhão de luz no hiperespaço. Você terá se infiltrado, como um espião ou um vírus, no coração da máquina que move um mundo de palavras sem tempo de fazer sentido. É horrível. Avance a mão, colha uma ao léu, e então comece.
II
Nunca aceite conselhos, com exceção deste: nunca aceite conselhos. A abertura da exceção destina-se a evitar um curto-circuito lógico que precipitaria o pensamento em abismos semelhantes ao do célebre "paradoxo do mentiroso" de Epimênides ou Eubulides, aquele que diz: "Estou mentindo agora". Caso aceite este conselho, você vai descobrir que ter aberto tal exceção equivalerá a reconhecer – questão de honestidade intelectual – o princípio de que conselhos podem ser úteis e que, sendo assim, a determinação de nunca aceitá-los é uma estupidez. Um caminho que parece menos traumático é recusar o conselho de nunca aceitar conselhos e permanecer livre para aceitar os conselhos que quiser, repudiando os demais. No entanto, a arbitrariedade dessa discriminação, confundindo-lhe a alma, tenderá a encaminhá-lo para a aceitação do conselho bom ao lado do ruim, qualquer um, na verdade, menos este, o de nunca aceitar conselhos. Aceite todos, portanto, inclusive este, eis o que seria meu principal conselho, se eu não estivesse mentindo agora.
III
Esqueça o famoso conselho: um escritor não precisa escrever sobre o que "conhece bem". Quase todo mundo, ao escrever sobre o que conhece bem, produz platitudes que o leitor também conhece bem, antes mesmo de ler. Invente, se der na veneta, um mundo pré-colombiano inteiro, mapas e tudo, com nórdicos e ibéricos que a história não registrou se imiscuindo entre os incas, onde uma princesa chamada Aya, cujo amor pelo louro Thür foi condenado por seu pai, o imperador Tapa-Quichuchu, entra nua e magnífica numa banheira de enguias elétricas enquanto na rua o povo comemora a chegada de um novo ciclo lunar fornicando desavergonhadamente pelos cantos, ao som de trompas de chifre e tambores de lhama. Então, no meio daquela zorra, pare um minuto e dê a alguém, um personagem qualquer, um traço seu: a dor de cabeça da noite passada, por exemplo. Um jeito de andar ou falar. Em histórias menos épicas, pode ser a preferência por uma marca de cerveja. Basta: essa gota de verdade pessoal, essa mísera pincelada no formidável painel, num fenômeno alquímico ainda pouco elucidado, torna de repente lancinante o suicídio da bela Aya, imprescindíveis as enguias, trompas, bacanal, América pré-colombiana de araque ou o que quer que se urda com razoável esmero e que por obra daquele detalhe pífio, daquela gota de experiência, vibra agora tão vivo quanto a vida que temos diante do nariz, só que mais excitante. Ou pelo menos é nesse sentido que você encaminha suas preces.
IV
Busque no ritmo das pedrinhas portuguesas a exata ondulação de um capítulo. Abra o dicionário ao acaso para encontrar o adjetivo preciso. Conte o número de carros azuis que avista da janela no prazo de cinco horas para decidir quantas vezes um personagem deprimido tenta se matar antes de ter sucesso. Desventre croissants para estudar camadas de sentido. Aposte contra a máquina no futebol do Playstation o destino – ganhou, apogeu, Fitzgerald; perdeu, decadência, Faulkner – de um protagonista ególatra, seja astro do rock ou imperador da borracha na Manaus do século XIX. Estude doutamente a borra do café, procure ancestrais desígnios pétreos nas dobras do lençol pós-insônia, contemple o ar invisível, sonde as próprias fezes. Faça cada dia de chuva puxar uma pétala do malmequer, e assim, passados sete meses, decida o desenlace romântico de herói e mocinha. Para questões de estilo, prefira roletas e dados.
V
Não precisa ser a primeira preocupação do escritor ao se sentar diante do suporte físico ou etéreo em que gravará suas palavras, mas em algum momento do processo é recomendável que ele tenha em mente a questão do texto que se fagocita contra o texto que se degusta aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio. A oposição estabelecida por Andrônico de Rodes, o primeiro editor de Aristóteles, e ampliada por diversos pensadores, dos quais Montaigne não será um dos menos ilustres, vive desde o Modernismo uma crise de cognição. Hoje, quando se refere à questão do texto que se fagocita contra o texto que se degusta aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio, o crítico erudito tende a pensá-los como dois países autônomos. Talvez influenciado pela famosa oposição entre intelecto ativo e intelecto passivo proposta pelo Estagirita que Andrônico seguia, imagina cada um desses territórios entregue a seus próprios habitantes, com autores de livros para fagocitar atendendo à demanda de leitores fagocitadores, e produtores de carpaccio à dos apreciadores de fatias finas. Equilíbrio que não deixa de ser precário, como atestam as guerras diplomáticas entre as nações antípodas, mas é, de todo modo, reconfortante. Se retomarmos o fragmento original, porém, veremos que algo importante se perdeu desde a intuição fulgurante do obscuro peripatético: "Histórias comidas com vagar alimentam o intelecto, histórias engolidas de uma vez alimentam a alma". Ora, o que se perdeu é algo que, ao lançar na arena uma oposição de outro nível epistemológico e moral, descola o humilde Andrônico do campo aristotélico da moderação: o fato bastante óbvio de que o bom leitor (fiquemos em bom, para não invocar um ideal platônico) precisa nutrir tanto cabeça quanto alma, e portanto não se satisfará com uma coisa só. É provável que se torne então um leitor voraz e eclético, do tipo que intercala livros para fagocitar com livros para degustar aos poucos, em fatias finas, como um carpaccio. Mas também pode ser que, não contente com tal arranjo, passe a procurar escritores que revezem como ele os dois estilos, brincando de gangorra com carpaccios e fagocitoses, numa alternância que será o motor da própria escrita, às vezes com bruscas inversões dentro da mesma frase ou, pensando bem, da mesma palavra. O leitor verá que esses escritores não são fáceis de encontrar, mas procurá-los é preciso. O que você tem a fazer é lutar com todas as forças para ser um deles.
VI
Não tenha preguiça de reescrever. O escritor que não reescreve o que acabou de escrever, mesmo que por pura mania, mesmo que para deixar o texto indiscutivelmente pior, não merece ser chamado de escritor. Será, no máximo, um excretor a sujar de palavras fisiológicas em estado bruto um mundo que não precisa de sua contribuição para se assemelhar a um aterro sanitário de símbolos. Se escrever dez linhas, reescreva-as dez vezes em dez horas, e mais dez vezes a cada dez horas dos dez dias seguintes: corte, amplie, pregue, serre, lixe, solde, cole, mude tempos verbais e a ordem dos parágrafos, exercite a sinonímia e a intolerância. (Este conselho, por exemplo, foi reescrito ao longo de nove meses de trabalho diário. Em sua primeira versão, dizia: nunca reescreva o que acabou de escrever.) E caso ocorra a circunstância nada improvável de retornar nesse processo de edição a um texto muito semelhante ao original, ou mesmo idêntico a ele, saiba que a sensação de tempo perdido será uma ilusão e que o fruto da reescritura, como o Quixote de Pierre Menard, terá por trás das mesmas palavras uma densidade incomparavelmente superior. Claro que também é preciso reconhecer o momento de parar de reescrever, aquele ponto a partir do qual, como nas cirurgias plásticas em série, qualquer nova mexida só pode resultar em desastre, mas isso não é tão difícil: ele costuma vir acompanhado do impulso de golpear repetidamente o cristal líquido com o teclado para ver qual quebra primeiro.
VII
Não perca um minuto discutindo com quem prega a morte da narrativa. Evidentemente, o que esse cidadão está tentando fazer é criar uma – sim! – narrativa, aliás ingênua e batida, em que ele próprio é ao mesmo tempo o bandido que mata a velha dama aristocrática chamada Literatura e o mocinho que desvenda o crime, trazendo a boa nova de um futuro em que os narradores serão substituídos por… filósofos da linguagem? Se é verdade que vivemos um tempo de inflação narrativa em que a vida privada se vê transformada em "historinha" de forma instantânea nas redes sociais, a única resposta que a isso pode dar a literatura, arte narrativa por excelência, é narrar melhor. Narrar a narrativa, narrar o processo que fez tudo virar narrativa. Ou criar uma narrativa que dê um jeito de ser tão focada que brilhe em meio à pasta amorfa geral, atingindo o frescor pelo paradoxo da evocação de uma certa luz perdida. Por definição, nunca se pode dizer de onde virá o novo. Mesmo porque a tal inflação não começou há cinco anos, nem há trinta. O modernismo é, entre outras coisas, uma réplica artística à trivialização das histórias promovida por imprensa, rádio e cinema no início do século 20. Parece inegável que a crise se aprofundou e exige novas respostas, mas supor que estas proscreverão sumariamente a pulsão narrativa, mãe de poesia e prosa, é um erro tão simplório que parar para discuti-lo só atrasa a vida – que, como se sabe, é curta. Deixe o cara falando sozinho e vá escrever aquele conto.
VIII
Cultive um amuleto para os momentos de desespero. Pode ser Al Pacino perguntando a Diane Keaton em O poderoso chefão: "Quem está sendo ingênuo, Kay?" (Quem está sendo ridículo, cara?) Pode ser qualquer coisa, a memória do ar frio da madrugada entrando em seus pulmões numa manhã de pescaria na infância, um retrato da sua filha sorrindo com a boca sem dentes toda suja de feijão quando tinha um ano, uma estrofe de Bandeira, um labirinto de Escher, uma foto de Gautherot, qualquer objeto material ou imaterial que tenha algo de imantado e permanente e que, invocado como último recurso, agarrado na vertigem do sorvedouro como as sobrancelhas de Capitu eram agarradas por Bentinho em dias de ressaca, o impeça de cair no ralo que cedo ou tarde tenta nos tragar a todos, aquela contabilidade avara de elogios e críticas e gentilezas e esnobadas e alianças e hostilidades e rancores guardados na geladeira em tupperwares etiquetados, nomes e datas, vinganças agendadas, o ressentimento justificado, o ressentimento injustificado – o ressentimento, só. Quando a corredeira dos egos escoiceantes ameaçar transformá-lo num idiota, num paspalhão, agarre seu amuleto com todas as forças e saia em diagonal, dançando um maxixe com ar distraído, para não ter que admitir nem para si mesmo que disso depende sua salvação.
IX
Pense nas palavras como amantes jogo-duro, seres neuróticos e esquivos que, para cada noite de prazer desbragado a apontar o infinito da posse plena, destinam ao insensato que com elas se envolve trezentas noites de gagueira e frio e fome não saciada, de cabelos puxados no meio do deserto no mais atroz desespero. Desconfie das palavras. Se declaram amor, exija mais, cobre provas, invente caprichos. Se lhe dão as costas, vá atrás. Sendo preciso chegar a tanto, implore, humilhe-se, mas guarde uma secreta porção de orgulho ferido: ela lhe será útil quando, após a próxima reconciliação, vocês brigarem de novo. Se desconfiar que as palavras lhe são infiéis, é porque são mesmo. Entregam-se a qualquer um que as saiba afagar, as vagabundas: o que são os clássicos da literatura universal senão os autos de seu ancestral pendor pela galinhagem? É só você que elas desprezam. Diante de suas cantadas subitamente ineptas, reviram os olhinhos, tingem os lábios de frio desdém. Revirar-lhes os olhinhos de prazer, morder seus lábios gulosos será então, para sempre, a ideia fixa do escritor, o padrão-ouro de sua vida. Coitado. Se tiver habilidade e sorte, conseguirá ter com as palavras uns poucos momentos memoráveis, o que é ótimo, contanto que não lhe suba à cabeça. É importante não esquecer que elas sempre vencem no fim, sempre esnobam, vão se entregar aos outros, ao mundo, a ninguém, deixando atrás de si, como uma cauda de cometa, o mudo turbilhão de indiferença que é a herança de todos os seus amantes.
X
Desista se for capaz. Pode ser que, após ponderar os conselhos anteriores e testá-los em exercícios práticos diários, angustiosos e inconclusivos, você encontre no fundo da última gaveta da alma uma migalha de sanidade e vislumbre, ainda que por meio segundo, a possibilidade de uma vida de plenitude imediata em que escrever não seja necessário, mais até do que isso, em que escrever seja tão inconveniente quanto a música de mau gosto que vaza pela parede do vizinho no meio da noite. Nesse caso, é altamente recomendável agarrar a miragem e trabalhar dia e noite para fazer da fresta um caminho, da centelha uma rota de fuga para um mundo de coisas que existem antes das palavras ou à margem delas: amores sem versos declaratórios de impossível originalidade, luares desprovidos de citações, equações sonoras de Thelonious Monk fruídas com a paz resignada dos que não buscam tradução para o intraduzível. Se for bem sucedido, você verá que esses e outros benefícios superam com folga aquilo que terá deixado para trás: a luta corporal contra o vento, as admirações minadas de ódio, as recompensas risíveis, a certeza do fracasso final e, acima de tudo, o doloroso e progressivo descolamento irônico entre o eu e qualquer ideia possível de eu. Se for capaz de desistir, não pense duas vezes: simplesmente desista. Mas pode ser que a esta altura seja tarde demais, caso em que já não caberão conselhos e só me restará lhe deixar aqui como despedida, semelhante meu, meu irmão, um voto de boa sorte.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

gato superando abstáculo

A eloquência do silêncio


Autor: sergiorodrigues


silêncioA importância do silêncio numa narrativa de ficção se manifesta de diversas formas, incluindo as óbvias elipses e subentendidos, pois, como disse Erico Verissimo (que cito de memória), "um dos segredos do romancista é nunca explicar demais". Tudo aquilo que não é dito oferece à imaginação do leitor – coautor pouco comentado de qualquer obra literária – espaço para se espraiar, ligar os pontinhos, produzir e não apenas decifrar sentido. Embora geralmente esquecido, até mesmo o silêncio que vem antes da primeira frase do texto, como os milênios de não-ser que precedem o nascimento de qualquer bebê, é tão fundamental quanto o clímax de uma história. O silêncio que vem depois do fim, então…
Vamos começar pelo começo. Entramos em "Viva o povo brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro, um dos grandes romances de nossa literatura, vendo o herói ser fuzilado. A sugestão de uma longa história passada, mas calada, insinua-se na estranha precedência de uma conjunção adversativa a adversar o ignorado:
Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar.
Se repararmos bem, veremos que o longo futuro da história também já se encontra, cifrado, nessa abertura. Mas por que o relato não começa antes? Como José Francisco foi parar na Ponta das Baleias naquele momento fatal? Que vida teve? Será que sabia tocar rabeca, amou uma ou várias mulheres, contraiu caxumba na infância? Quem são seus pais, seus avós, seus antepassados remotos? Por que começar justamente ali?
Porque o resto – tal é o poder que tem o texto literário de transformar em determinismo as opções autorais mais arbitrárias – é silêncio.
Se o silêncio que antecede a primeira palavra de uma história costuma passar despercebido, aquele que vem depois do ponto final é de uma eloquência ensurdecedora. Dificilmente haverá um escritor que não tenha, em algum momento, se deparado com esta queixa, que por sinal é muitas vezes infundada: "Mas a história não termina…".
Que o leitor, sobretudo aquele de um tipo mais ingênuo, exija como final de qualquer relato ficcional um arremate claro que junte todas as pontas da trama, de preferência num laçarote vistoso e provido de uma inequívoca moral, é compreensível. O problema é o autor acreditar que deve obrigatoriamente se curvar a tal demanda, deixando de compreender o quanto de reverberação pode acrescentar à sua história, em certos casos, um silêncio brusco, aparentemente prematuro e definitivamente perturbador.
Não me refiro aqui ao simples ato de apontar um futuro em branco, um pós-texto qualquer, deixando ao leitor um convite ao preenchimento do vazio da página, como se vê por exemplo no engenhoso – e famoso – fim de "Uma aprendizagem", de Clarice Lispector:
… eu penso o seguinte:
Ocorre que, a essa altura, o conflito central do livro de Clarice já se resolveu, Lóri e Ulisses estão na cama, o que torna a indeterminação do futuro uma esperteza estilística – além de um espelho da vida real, claro, comentário irônico sobre a tentação do impossível "felizes para sempre" que insiste em rondar as expectativas daquele nosso leitor ingênuo.
Contudo – como diria João Ubaldo –, o silêncio brusco, aparentemente prematuro e definitivamente perturbador exige mais do que isso. É preciso que o conflito que moveu a narrativa, ou pelo menos uma parte dele, fique sem solução. É preciso obrigar o leitor a apostar num dos desenlaces possíveis e ao mesmo tempo condená-lo à tortura eterna de não saber se ganhou ou perdeu.
Um dos exemplos mais antigos e bem-sucedidos que conheço desse tipo de fim está na novela "A interdição", de Honoré de Balzac (no volume 4 de "A comédia humana", na nova edição da Biblioteca Azul), uma de minhas leituras de fim de ano. A história gira em torno do processo de interdição que move uma rica parisiense – uma daquelas mulheres ambiciosas, vaidosas, calculistas e ordinárias que Balzac adorava pintar – contra o ex-marido, de olho em sua fortuna, sob a alegação de que o sujeito enlouqueceu.
Aqui sou obrigado a incluir um spoiler, o que imagino não ser grave no caso de um livro lançado em 1836, mas vale o alerta: o ex-marido é um nobre dotado não apenas de lucidez, mas também de um caráter admirável que o leva a atos de um desprendimento vertiginoso. O juiz encarregado do caso, não menos probo, percebe isso tão claramente que chega a se emocionar. A história se encaminha para um fim previsível e reconfortante: o processo de interdição é ignóbil, será rejeitado, que beleza.
Aí entra o gênio de Balzac. Sob uma desculpa rota, quem sabe um mal-entendido, o juiz honesto é afastado na última hora do caso. Em seu lugar nomeia-se um juizinho novato, arrivista, venal. Fim.
Como assim – fim? E o processo que dá título à narrativa? Qual é o veredito? Não sabemos. Ao condenar moralmente o novo juiz, as últimas linhas nos levam a supor que o nobre homem será lesado pela ex-mulher sem caráter, mas a verdade é que não temos como saber. O silêncio chega primeiro, transformando "A interdição", que do contrário seria apenas uma boa novela, numa novela memorável.
(Em outro ponto do imenso painel de "A comédia humana", Balzac, que gostava de voltar a personagens de livros anteriores, nos informará que a litigante de má-fé perdeu o processo, afinal. Isso não diminui em nada a reverberação que o fim de "A interdição" deixa na cabeça do leitor.)

FOTOS E VÍDEO – O deslumbrante Lago Saint Mary, onde Stanley Kubrick rodou a abertura de “O Iluminado”

 Autor: ricardosetti


O começo de "O Iluminado": cenário de sonhos contrastando com atmosfera de pesadelo (Imagem: reprodução)
O começo de "O Iluminado": cenário de sonhos contrastando com atmosfera de pesadelo.

Quem já assistiu a O Iluminado, obra-prima do terror dirigida por Stanley Kubrick, estrelada por  Jack Nicholson e lançada em 1980, jamais esquece a sequência de abertura do filme.
O carro ocupado por Jack Torrance (Jack Nicholson), a esposa Wendy e o filho Danny ruma montanha acima, tendo como destino o enorme e estranho hotel onde a família passará o inverno, isolada do resto do mundo.
Vale a pena ver novamente. Até pelo aterrorizante trailer que vem antes na edição abaixo, e o charme especial de um dos erros de produção mais notórios do cinema, a sombra do helicóptero que aparece no canto inferior direito no tempo 2'54":
www.youtube.com/watch?v=gSCr_q71ZtE

Parque Nacional Glacier
Foto: Parque Nacional Glacier
Glacier National Park, St. Mary's Lake and Lone Goose Island. Autumn. Montana.
Ao centro, a Ilha Goose ("Ganso"), que também aparece na abertura do filme de Kubrick (Foto: Parque Nacional Glacier)
Ken Thomas
Foto: Ken Thomas
Montana RJC
Foto: Montana RJC
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Foto: Montana Official State
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Foto: Montana Official State
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Foto: Montana Official State
Robert Zavadil
A versão invernal do lago, com as águas congeladas (Foto: Robert Zavadil)