sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

CONTOMiguelaf: SODOMA&GOMORRA


GOMORRA

O gesto de olhar para trás
foi exemplarmente castigado
na terna figura da mulher de Lot.
E, no entanto, o que aquela imagem
irreal de sal que fugia de um desastre desejava
era apenas indagar ter notícias.
Talvez
em meio ao intolerável cataclismo
estivesse perecendo o amante
que à sua vida monótona
dera um sentido intenso, uma ilusão viva
e assim abjurava ela
do privilégio de sua imunidade.

Luís J. Moreno

SODOMA E GOMORRA


A imunidade
de continuar viva nesse cotidiano ao lado de um bom marido: exemplar devoto de bom comportamento social; como prova sua maneira gentil de receber o chefe quando este condescende a comparecer ao jantar especialmente preparado por "ele" na casa do casal.
Uma vida certamente regrada, cuja moral‚ constatada e regada, derramando-se pelas paredes da casa: quadros de natureza em decomposição, reproduções de pitorescas e irreais vielas, casinhas românticas de interior bucólico; frases lapidares em letras rebuscadas, abençoando lar e religião; um crucifixo de "madeira-de-lei" encimando o bar, cujas bebidas alcoólicas são só para as visitas. Algumas.

o privilégio
de uma transa rápida, duas vezes por mês, debaixo dos lençóis e com a luz apagada.

o elogio
pela sua vivacidade em ter conseguido poupar alguns trocados nas compras: da loja; do supermercado; da feira, em pechinchas exaustivas.
- como ela é experta! Viram?

a alegria
de pizza nas tardes de domingo, com cerveja, televisão e amigos: todos casados e com rosados planos para filhos idem tidos e por vir.

a imunidade
de poder envelhecer lenta, serena e seguramente, trocando com as amigas inúteis receitas de beleza que se esvai por entre os dias. E os quilos pecaminosos que devem ser eliminados com comida sadia e leve. Todas salpicadas de culpa.

a emoção
dos Natais e Aniversários, comprando, embrulhando ou abrindo presentes previstos de amigos idem e familiares.
Dos dois.

a técnica
sofisticada de disfarçar a saudade erótica e agora pornográfica, do primeiro namorado que, em incontáveis transas, enaltecia até a glória a sua libido - hoje resguardada decorativamente entre suas pernas; solidificando assim a monogamia fiel e reprodutora do casal feliz e exemplar.

privilégio
de participar de mensal e "profundo" raciocínio com as contas do fim do mês, a fim de economizar para o ano vindouro trocar novamente de carro.

regozijo
barulhento porque a menstruação não veio: horas, dias e semanas a fio discutindo o nome do rebento que está por vir; se for mulher; se for homem; a cor das paredes do quarto; a "madeira-de-lei" do berço; a igreja onde será batizado; a cor da primeira bicicleta; a escola ideal e particular; os amiguinhos que terão de ser cuidadosamente selecionados; o esporte certo na hora certa; a profissão mais rentável; a moça perfeita para casar e ser a mãe de seus filhos, nossos netos!

frustração
cheia de cólicas sanguinolentas, sujando as calcinhas e maculando os sonhos do repentino infeliz casal. Ginecologistas à procura das sombras na suas entranhas que empalideceram a luz da maternidade.

culpa
dela, certamente - “que fica mijando placenta que deveria ficar lá, amparando o filho bom”- que tooodos esperavam.

Por isso tudo, Matilde - já na casa dos 38 anos- resolve não ter tantos "privilégios".
Depois de elaborado álibi, assassina o marido exemplar de maneira tão habilidosa que ninguém nunca duvidou tratar-se de trágico e inevitável acidente.
Pouco depois, com o dinheiro do seguro, a poupança, o apartamento - vendido - e o carro "do ano" - vendido! - e vivendo maritalmente com dois homens apaixonadíssimos por ela (Um negrão meio selvagem que a idolatra e quer transar com ela todas as noites, e um branco atarracado metido a poeta que entre uma transa e outra, compõe letras de músicas dedicadas a ela e a tooodo seu corpo), suas atuais preocupações passam a ser:

a) Evitar que pinte ciúmes entre seus dois amantes e, para isso, caprichar igualdade no trato diurno e despachadamente diuturno, na cama.

b) Mandar fazer colchão com medidas especiais para poderem juntos, dormir ou transar numa boa curtindo filmes pornô. Os três.

c) Mandar instalar banheira também com medidas especiais para caberem os três na hora do banho. Juntos.

d) Manter o estoque de bebidas em dia.

e) Caprichar sempre nos pratos, principalmente na feijoada dos sábados que seus homens adoram e cobram amorosamente.

f) Não emagrecer demais - eles adoram suas banhinhas.

g) Não perder o DIU entre uma transa e outra; até achar pílula condicente com seu metabolismo. Marcar consulta com o ginecologista para amarrar trompas.

h) Impedir, custe o que custar, que seu novo endereço seja descoberto pela antiga família e/ou amigos de outrora. NUNCA!
“PelamordiDeus!” (Matilde.)

Pendurado na cabeceira da cama:
Eclesiastes 69:
“Sempre juntos, jamais seremos vencidos pelo tédio, pelo ciúme,
pela solidão e principalmente pelos etcéteras.
E todos pela alegria!
Juntos, um pelos dois e os dois pelos três.
E todos pelo prazer!
Sempre alertas contra os desmancha prazeres
dos catecismos comportamentais que pintarem no ninho.”

Música de Trovão e letra de Matilde.

POETAS: Fernando Pessoa


Por que fiz eu dos sonhos
a minha única vida?

Fernando Pessoa
*
Uma maior solidão...



Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração.


Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.


Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim.

POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
...
(Poema extraído do livro "O EU PROFUNDO E OS OUTROS EUS", Fernando Pessoa,
antologia poética, editora Nova Fronteira.)

"Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma"
F. Pessoa
------------
"Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens."
(Fernando Pessoa, em "O Eu Profundo")

"A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta".
Fernando Pessoa

Há doenças piores que as doenças

Fernando Pessoa


Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

Fernando Pessoa



Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?
Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma espécie de fim,
Ou uma grande razão -
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Alberto Caeiro



Tabacaria* (Alvaro de Campos)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede
sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como
tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal
disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


XVIII
"Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...
Quem me dera eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...
Antes isso que ser o que atravessa a vda
Olhando para trás de si e tendo pena...

II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para tráas...
E o qe vejo a cada momento
É aquilo que nunca eu tinha visto...

O Guardador de rebanhos
Pessoa/Caieiro



Fernando Pessoa
"O fim da arte inferior é agradar,
o fim da arte média é elevar, o fim
da arte superior é libertar"
--------


"Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento, assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade"
Fernando Pessoa
-------


"O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente" (Fernando Pessoa)
-------


"Não há critério da verdade senão não concordar consigo próprio. O universo não concorda consigo próprio, porque passa. A vida não concorda consigo própria, porque morre.

Fernando Pessoa

POETAS: Florbela Espanca


Tortura

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
-- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...


Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
-- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento...


São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!


Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!






Florbela de Alma da Conceição Espanca nasceu em Vila Viçosa, no Alto Alentejo, em 8 de dezembro de 1894. Como seu irmão Apeles, era filha ilegítima e cresceu na charneca, espécie de caatinga alentejana. Em 1908 a família se mudou para Lisboa: quando publicou o Livro de mágoas (1919), a poetisa já estava casada e cursando direito. Instável, casou-se mais duas vezes e, em correspondência de sentido ainda controverso com o irmão, parece distingui-lo como sua paixão mais verdadeira. Apeles, que se tornara aviador, desesperou-se com a morte de uma namorada e mergulhou em picada no Tejo






Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
F. Espanca





Florbela Espanca:
"Dum estranho país que nunca vi / Sou neste mundo imenso a exilada", escreveu no Livro de Sóror Saudade.





"O olhar dum bicho comove-me mais profundamente que um olhar humano. Há lá dentro uma alma que quer falar e não pode, princesa encantada por qualquer fada má."





Há, do mesmo modo, a consciência do fracasso: "Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas/ Prendeu da vida, assim como ninguém,/ Os maus espinhos sem tocar nas rosas!"
__________________






Breve História de Florbela
A poetisa nasceu em Vila Viçosa, tinha por nome
completo o de FLORBELA D'ALMA DA CONCEIÇÃO
LOBO ESPANCA. Em família era designada pelo
diminutivo afectuoso de Bela.
Na vida de Florbela há uma data de coincidências
curiosas: a do dia 8 de Dezembro. Neste dia nasceu
em 1894; neste dia casou pela primeira vez,
civilmente, em 1913 e, neste dia (na noite de 7 para 8
de Dezembro) faleceu, em 1930, com 36 anos de
idade.
Era filha de Antónia da Conceição Lobo e de João
Maria Espanca. João Maria era casado com Maria
Toscano, mas, como deste casamento não houvesse
filhos, o Espanca estabeleceu uma relação com a
Antónia e dessa relação nasceram dois filhos: Florbela
e Apeles.
Florbela Espanca
1894 - 1930
Cedo a mãe troca o Espanca por outro homem e vai para Évora. Os dois filhos ficaram com o pai e com a mulher deste, Maria Toscano, que se transforma em mãe adoptiva.
Ao atingir a idade escolar, Florbela frequenta o estabelecimento de ensino Dona Ana Locádia, em Vila Viçosa. Ao concluir a 4ª classe, transita para a escola secundária do professor Romeu que frequenta até concluir o 3º ano, o que acontece até 1907. No 4º ano vai para Évora para o Liceu André de Gouveia.
Com ela vai toda a família que se instala na Rua de Avis, nº16.
O acesso da mulher a estabelecimentos de ensino secundário era muito mal visto na altura. Florbela foi das primeiras mulheres a frequentar o liceu eborense o que não agradava sobretudo aos professores.
Foi aluna do Liceu de Évora até 1912. Em 8 de Dezembro de 1913 (o dia dos seus 19 anos) casa-se civilmente com Alberto Moutinho, seu colega de liceu.
Mais tarde vai estudar para Lisboa, frequentando a Faculdade de Direito.
Numa carta datada de 16 de Junho de 1916, a poetisa escreve: "Sou triste,
duma tristeza amarga e doentia que a mim própria me faz rir" (...) "Tenho dias em que as pessoas me dão a impressão de pequeninas figuras de papel sem expressão e sem vida" (...) "Eu sou insaciável, mal um desejo surge, outro desponta e em mim há sempre latente a febre do sonho e do desejo".
Escreve noutra carta: "Eu não sou boa nem quero sê-lo; contento-me em desprezar quase todos, odiar alguns, estimar raras vezes e amar um". (Carta a Júlia Alves)
O primeiro casamento fracassou, segue-se um segundo casamento com António Guimarães, que teve a mesma sorte, e, em Outubro de 1925, então com 31anos, casa-se pela terceira vez, em Matosinhos, com Mário Lage.
A sua relação com Mário Lage degrada-se também, chegou ainda a ter uma ligação com Luís Maria Cabral, médico e pianista, mas já não deu em casamento.
No meio de tudo isto, há um personagem que teve uma grande importância na vida de Florbela Espanca: foi o seu irmão Apeles Espanca. Da numerosa correspondência que a poetisa nos deixou, fica-nos a ideia de que o grande amor da sua vida era o irmão. Numa das cartas que lhe escreveu, Florbela diz: "Peço-te que te lembres que sem ti não posso ser feliz nunca mais".
Em 6 de Junho de 1927, Apeles Espanca morre, quando o avião em que seguia se despenha nas águas do Tejo. A partir daí, a poetisa já não voltou a ser o que era. Numa carta que escreve ao pai, desabafa: "Não me sinto nada bem e estou magríssima... Estou uma velha cheia de cabelos brancos e sem vontade para nada".
Em Agosto de 1928, cerca de um ano depois da morte do irmão, Florbela Espanca tenta suicidar-se. Segue-se uma segunda tentativa de suicídio em Novembro de 1930. No dia 8 de Dezembro desse mesmo ano, no dia do seu aniversário, foi encontrada morta num quarto em Matosinhos. Debaixo do colchão foram encontrados dois frascos de Veronal, ou seja do fármaco que tomava para conseguir dormir.
O Amor foi a principal tragédia de Florbela Espanca, mas não foi a única. A doença agravada pelo drama amoroso, foi outro doloroso calvário que a poetisa teve de percorrer, e que, se outro bem não teve, lhe inspirou, pelo menos, versos sublimes, embora repassados de pessimismo e desalento. Florbela soube fazer da sua dor um poema! Essa neurastenia, com forte dose de histerismo, agravou-se e, por sua vez, agravou a doença pulmonar, manifestada aos 14 anos, em 1908 e da qual nunca se curou totalmente. O Dr. Celestino David observa que: "Os nervos agravaram-lhe a doença; a doença afina-lhe os nervos".
Florbela já fazia versos aos oito anos! E fê-los até à morte. Foi a sua vocação e paixão literária. Houve quatro fontes de inspiradoras da fecundidade poética de
Florbela Espanca: a natural propensão para a poesia; a Dor; a paisagem alentejana e, sobretudo, o Amor.
adaptado de: "Alentejo Digital"
E o Tempo também chorou
Agustina Bessa-Luis assinala que, no dia do funeral, a vila de Matosinhos é varrida por uma tempestade.
Não é possível fazer o enterro, porque desaba sobre o cemitério uma chuva torrencial; Florbela fica durante a noite na capela. Pálida, as pequenas mãos no peito, o vestido de seda preto iluminado pelas velas, ela tem um ar calmo.
Bibliografia
» Livro de Mágoas
» Livro de Soror Saudade
» Charneca em Flor
» Juvenília
» Cartas de Florbela Espanca a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli
» As Máscaras do Destino (contos)
» Cartas de Florbela Espanca
» Diário do Último Ano
» O Dominó Preto (contos)
------------------





Vaidade
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo o que sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quanto mais no alto eu vou sonhando,
E quanto mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho... E não sou nada!...
--------------





Excertos de Cartas e Diário
Florbela Espanca deixou atrás de si um diário e também muita correspondência.
Cartas que escrevia a amigos e familiares, onde dizia de uma forma bem clara aquilo que sentia e o que lhe ia bem no fundo da alma. Aqui ficam alguns excertos dessa correspondência:
«Estou hoje num dos meus dias cinzentos,
como diz nosso escritor; dia em que tudo é
baço e pesado como a cinza, dia em que
tudo tem a cor uniforme e nevoente dele,
desse cinza em que eu às vezes sinto
afundar o meu destino. Estou triste e
vagamente parva, hoje, e no entanto, estou
na capital do Alentejo; aos meus ouvidos
chega o ruído dos automóveis, o barulho
cadenciado das patas dos cavalos de luxo, o
pregão forte e sensual que é toda a alma de
mulher do povo, e por cima disto tudo, a
espalhar vida, luz, harmonia, sinto o sol, um
sol de fogo, o sol do meu Alentejo sensual e
forte como um árabe de vinte anos! Pois
tudo me irrita! Que direito tem o sol para se
rir hoje tanto? Donde vem o brilho que Deus
pôs, como um dom do céu, nos olhos das
costureirinhas que passam? Donde vem a
névoa de mágoa que eu trago sempre nos
meus?! Vê?... É o dia pesado, o dia em que
eu sou infinitamente impertinente e má
como uma velhota de oitenta anos.
Florbela Espanca





Eu odeio os felizes, sabes? Odeio-os do fundo da minha alma, tenho por eles o desprezo e o horror que se tem por um reptil que dorme sossegadamente. Eu não sou feliz mas nem ao menos sei dizer porquê. Nasci num berço de rendas rodeada de afectos, cresci despreocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que não conhecia, e de repente, amiga, ao alvorecer dos meus 16 anos, compreendi muita coisa que até ali não tinha compreendido e parece-me que desde esse instante cá dentro se fez noite.





Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos os corações
verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o meu para sempre.
Podiam hoje sentar-me num trono, canonizar-me, dar-me tudo quanto na vida representa para todos a felicidade, que eu não me sentiria mais feliz do que sou hoje. Falta-me o meu castelo cheio de sol entrelaçado de madressilvas em flor; falta-me tudo o que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o que era... É a história da minha tristeza. História banal como quase toda a história dos tristes.» Florbela Espanca





«...Sou uma céptica que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que aceita, sorridente, todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura. Grave e metódica até à mania, atenta a todas as subtilezas dum raciocínio claro e lúcido, não deixo, no entanto, de ser uma espécie de D. Quixote fêmea a combater moinhos de vento, quimérica e fantástica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras à vida, num dar de mim própria que não acaba, que não desfalece, que não cansa! Toda, enfim, nesta frase a propósito de Delteil: "Très simple avec son enthousiasme à sa droite et son désespoir à sa gauche."» Florbela Espanca
«O olhar dum bicho comove-me mais profundamente que um olhar humano. Há lá dentro uma alma que quer falar e não pode, princesa encantada por qualquer fada má. Num grande esforço de compreensão, debruço-me, mergulho os meus olhos nos olhos do meu cão: Tu que queres? E os olhos respondem-me e eu não entendo... Ah, ter quatro patas e compreender a súplica humilde, a angustiosa ansiedade daquele olhar!

Afinal... de que tendes vós orgulho, ó gentes?» Florbela Espanca





«...Não me esteja assim tão reconhecido pois tenho a consciência de que o não mereço. Que fiz eu? Nada ou quase nada. Tenho pena, hoje que vou envelhecendo, de ter fugido a sete pés de todas as cabotinagens e de ter vivido mais para mim, segundo o meu gosto, do que para os outros. Podia ser alguém hoje na sociedade portuguesa. Tudo desdenhei: as homenagens baratas e os chamarés do rebanho. Enchi meu gabinete de trabalho de livros bons, a minha vida moral com a minha arte, a meu gosto, sem me preocupar com o sucesso, com o mercado, com a publicidade, coisas imprescindíveis a quem quer vencer, e rodeei-me duma dúzia de amigos fanáticos cuja admiração me orgulha e faz bem.» Florbela Espanca





«...Amigas...conhecidas; por outra, tenho muitas, principalmente nesse meio de luxo e opulência em que a principal felicidade consiste num chapéu ou num vestido da moda. Eu não as entendo, nem elas a mim me entendem, e eu não sei se serão elas ou eu a razão, neste mundo em que cada um vive para si.»
Florbela Espanca
------------------------





Cartas

«Li hoje um livro que me consolou. A única coisa que consola os tristes é a tristeza; não te parece? (...) Chamava-se o desgraçado Silva Pinto; chama-se o livro "Neste Vale de Lágrimas". Conheces o desgraçado? Conheces o livro? É belo e consolador (...) Como eu o compreendi e como tão da alma o sinto! (...)
A propósito do suicídio lembra-me uma parábola indiana que é simplesmente um mimo. (...) É uma resposta aos que chamam ao suicídio um fim de cobardes e de fracos, quando são unicamente os fortes que se matam! Sabem lá esses pseudo-fortes o que é preciso de coragem para friamente, simplesmente, dizer adeus à vida, à vida que é um instinto de todos nós, à vida tão amada e desejada a despeito de tudo, embora essa vida seja apenas um pântano infecto e imundo!» Florbela Espanca





«Há quem suba a descer. Há almas privilegiadas e únicas que nada têm a ver com a lógica absurda das leis humanas. (...) Oh, o sorriso de desdém dos que querem morrer! Quem foi que se atreveu a dizer alguma vez, quem foi que ousou traçar num papel as letras da palavra cobardia, falando dum suicida? (...)
O que lhes foi preciso de coragem desdenhosa, de altiva serenidade, de profundíssimo desprezo, às almas que partiram por querer!» Florbela Espanca





«O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!»
Florbela Espanca





«Estou cansada, cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo, com a vida e com os outros. Diz-me, porque não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível? E é isso que me traz sempre desvairada, incompatível com a vida que toda a gente vive...» Florbela Espanca





«Eu não sou boa nem quero sê-lo, contento-me em desprezar quase todos, odiar alguns, estimar raros e amar um.» Florbela Espanca





«Sou pagã e anarquista, como não poderia deixar de ser uma pantera que se preza...» Florbela Espanca
----------------------------




Saudades

Saudades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão!
Quantas vezes, Amor, já me esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quando menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!
Florbela Espanca

DOS ANIMAIS

"O destino dos animais é muito mais importante para mim do que o medo de parecer ridículo." - Émile Zola

---------

Encontrei seu Cão

Autor desconhecido

Hoje encontrei seu cão. Não, ele não foi adotado por ninguém. Aqui por perto, a maioria das pessoas já têm vários cães; aqueles que não têm nenhum não querem um cão. Eu sei que você esperava que ele encontrasse um bom lar quando o deixou aqui, mas ele não encontrou. Quando o vi pela primeira vez, ele estava bem longe da casa mais próxima e estava sozinho, com sede, magro e mancava por causa de um machucado na pata.

Eu queria tanto ser você naquele momento em que parei na frente dele. Para ver sua cauda abanando e seus olhos brilhando ao pular nos seus braços, pois ele sabia que você o encontraria, sabia que você não esqueceria dele. Para ver o perdão em seus olhos pelo sofrimento e pela dor por que ele havia passado em sua jornada sem fim à sua procura... Mas eu não era você. E, apesar das minhas tentativas de convencê-lo a se aproximar, seus olhos viam um estranho. Ele não confiava em mim. Ele não se aproximava.

Ele virou as costas e seguiu seu caminho, pois tinha certeza de que esse caminho o levaria a você. Ele não entende que você não está procurando por ele. Ele só sabe que você não está lá, sabe apenas que precisa te encontrar. Isso é mais importante do que comida, água ou o estranho que pode lhe dar essas coisas.

Percebi que seria inútil tentar persuadi-lo ou segui-lo. Eu nem sei seu nome. Fui para casa, enchi um balde d'água e uma vasilha de comida e voltei para o lugar onde o havia encontrado. Não havia nem sinal dele, mas deixei a água e a comida debaixo da árvore onde ele havia buscado abrigo do sol e um pouco de descanso. Veja bem, ele não é um cão selvagem. Ao domesticá-lo, você tirou dele o instinto de sobrevivência nas ruas. Ele só sabe que precisa caminhar o dia todo. Ele não sabe que o sol e o calor podem custar-lhe a vida. Ele só sabe que precisa encontrá-lo.

Aguardei na esperança de que voltasse para buscar abrigo sob a árvore, na esperança de que a água e a comida que havia trazido fizessem com que confiasse em mim e eu pudesse levá-lo para casa, cuidar do machucado da pata, dar-lhe um canto fresco para se deitar e ajudá-lo a entender que agora você não faria mais parte de sua vida. Ele não voltou aquela manhã e, quando a noite caiu, a água e a comida permaneciam intocadas. Fiquei preocupada. Você deve saber que poucas pessoas tentariam ajudar seu cão. Algumas o enxotariam, outras chamariam a carrocinha, que lhe daria o destino do qual você achou que o estava salvando - depois de dias de sofrimento sem água ou comida.

Voltei ao local antes do anoitecer. Não o encontrei. Na manhã seguinte, voltei e vi que a água e a comida permaneciam intactas. Ah, se você estivesse aqui para chamar seu nome! Sua voz é tão familiar para ele. Comecei a ir na direção que ele havia tomado ontem, sem muita esperança de encontrá-lo. Ele estava tão desesperado para te encontrar, que seria capaz de caminhar muitos quilômetros em 24 horas.

Algumas horas mais tarde, a uma boa distância do local onde eu o havia visto pela primeira vez, finalmente encontrei seu cão. A sede não o atormentava mais. Sua fome havia desaparecido e suas dores haviam passado. O machucado da pata não o incomodava mais. Agora seu cão está livre de todo esse sofrimento. Seu cão morreu.

Ajoelhei-me ao lado dele e amaldiçoei você por não estar aqui ontem para que eu pudesse ver o brilho, por um instante sequer, naqueles olhos vazios. Rezei, pedindo que sua jornada o tenha levado àquele lugar que acho que você esperava que ele encontrasse. Se você soubesse por quanta coisa ele passou para chegar lá... E eu sofro, pois sei que, se ele acordasse agora, e se eu fosse você, seus olhos brilhariam ao reconhecê-lo, ele abanaria sua cauda, perdoando-o por tê-lo abandonado.
------------
Vira Latas
Autor desconhecido

Cheirando a canha e fumaça
A cruza de dois sem raça
Nasceste no olho da rua
Perambulaste em sarjetas
Sem nunca mamar nas tetas
Da mãe que um dia foi tua.

Sofreste o frio e o abandono
Daqueles que não tem dono
E que jamais tiveram teto,
mas por trás deste focinho
No olhar imploras baixinho
Que aceitemos o teu afeto.

Pelo ralo, pulgas, sarna...
Por pouco não desencarnas,
Doente e louca de fome,
foste achada cachorrinha
Assustada, tão sozinha,
sem sequer possuir um nome!

Pedigree, doutor, vacina,
No amargor de tua sina,
levaste vida de bicho!
Quase sempre escorraçada,
só tinhas a madrugada,
Prá comer restos de lixo.

Dividiste espaço e pratos,
Com outros cães, talvez gatos,
Brigando por um cantinho
Um lugar que te abrigasse,
Onde a chuva não molhasse,
Que fosse seco e quentinho.

Quis o destino no entanto,
talvez pro teu próprio espanto
Que outro dia alguém te achasse
E ao te ver machucadinha,
te arranjasse uma caixinha
e com carinho, te adotasse.

Que inveja tem outros cães,
mesmo aqueles que têm mães
Ao te verem bela e faceira
Senhora do pátio, jardim,
de um corredor sem fim, ao sol,
Dormindo na esteira...

---------
"A razão de eu amar tanto o meu cachorro é porque quando chego em casa ele é o único no mundo que me trata como seu fosse 'Os Beatles' ". Bill Maher (colunista, escritor e militante pelos direitos dos animais).
-----------
"Jamais creia que os animais sofrem menos do que os humanos. A dor é a mesma para eles e para nós. Talvez pior, pois eles não podem ajudar a si mesmos." - Dr. Louis J. Camuti
---------
"Cães amam seus amigos e mordem seus inimigos, bem diferente das pessoas, que são incapazes de sentir amor puro e têm sempre que misturar amor e ódio em suas relações." - Sigmund Freud
----------
"A compaixão para com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana." - Charles Darwin

"De todas as espécies a humana é a mais detestável. Pois o Homem é o único ser que inflige dor por esporte, sabendo que está causando dor." - Mark Twain (Escritor)

"Enquanto o homem continuar a ser destruidor impiedoso dos seres animados dos planos inferiores, não conhecerá a saúde nem a paz. Enquanto os homens massacrarem os animais, eles se matarão uns aos outros. Aquele que semeia a morte e o sofrimento não pode colher a alegria e o amor." - Pythagoras
------------
"Virá o dia em que a matança de um animal será considerada crime tanto quanto o assassinato de um homem."- Leonardo da Vinci
"Vendrá el dia en que la matanza de un animal será considerada crime tanto cuanto el asesinato de un hombre."- Leonardo da Vinci

---------
"A civilização de um povo se avalia pela forma que seus animais são tratados." - Humboldt
--------
"A compaixão pelos animais está íntimamente ligada a bondade de carácter, e pode ser seguramente afirmado que quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem." - Arthur Schopenhauer
-------------
"Os animais existem por suas próprias razões. Eles não foram feitos para humanos, assim como negros não foram feitos para brancos ou mulheres para os homens."-Alice Walker
------------
"Eu sou à favor dos direitos dos animais, bem como dos direitos humanos. Essa é a proposta de um ser humano integral"

Abraham Lincoln

-------
Pablo Neruda: Oda al gato
El hombre quiere ser pescado y pájaro,
la serpiente quisiera tener alas,
el perro es un león desorientado,
el ingeniero quiere ser poeta,
la mosca estudia para golondrina,
el poeta trata de imitar la mosca,
pero el gato
quiere ser sólo gato
y todo gato es gato
desde bigote a cola,
desde presentimiento a rata viva,
desde la noche hasta sus ojos de oro.


A Dictionary of a Cats Lovers,
Um Dicionário de uns Amantes de Gatos

Ditados

Deus criou o gato para que o homem tivesse o prazer de acariciar o Leão
Fernand Mery- escritor francês

O único mistério sobre sobre o gato é porque ele decidiu virar um animal doméstico
Sir Compton Mackenzie- Escritor Inglês

"Miau" é igual a "Aloha", pode significar qualquer coisa

Hank Ketchum- Cartunista americano.

Se o gato faz alguma coisa, nós chamamos de instinto, se nós fazemos alguma coisa, pelo mesmo motivo, nós chamamos inteligência.
Will Cuppy -Escritor Americano

Não importa o quanto os gatos briguem, eles sempre parecem um bando de filhotes
Abraham Lincoln- Presidente dos Estados Unidos

Que divertido ser um gato!
Gatos podem honrar a si mesmos com a capacidade de não fazer nada
John R. Breen

O cão, eu sempre disse, é a prosa, o gato, é a poesia
Jean Burdeu- Escritor Americano

Pelos olhos de um gato, tudo foi feito para os gatos
Provérbio Inglês

Não existem gatos comuns
Collete

O menor entre todos os gatos é uma obra-prima
Leonardo da Vinci

Se o homem pudesse cruzar com os gatos, isso melhoraria o homem e deterioraria o gato
Mark Twain

O modo como tratamos os gatos aqui em baixo determina nossa situação quando formos para o céu
Robert ª Heinlain

Gatos sabem como obter comida sem trabalho, abrigo sem confinamento e amor sem castigos
W. L. George

Os gatos raramente interferem com os direitos das outras pessoas. Sua inteligência os impede de fazer coisas bobas que atrapalham a vida
Carl van Vechten

Não há nada mais divertido que um gato jovem, nem mais sério que um gato idoso
Thomas Fuller

Gatos amam mais as pessoas do que elas permitiriam. Mas eles têm sabedoria suficiente para manter isso em segredo
Mary Wilkins

Mesmo quando gordos, os gatos conhecem instintivamente uma regra importante: quando estiver gordo, saiba se colocar em poses elegantes
John Weiz

Existem muitas espécies inteligentes no mundo. E todos eles são possuídos por gatos
Anônimo

Um gato sempre chega quando você o chama. A não ser que ele tenha algo de mais importante para fazer
Bill Adler

Milhares de anos atrás os gatos eram adorados como deuses; e até hoje eles não esqueceram isto
Anônimo

Gatos são mais esperto do que cães. Você nunca conseguiria colocar oito gatos para puxar um trenó
Jeff Valdez

Pessoas que odeiam gatos retornarão como ratos na próxima encarnação
Faith Resnick

Existem duas maneiras de nos refugiarmos das misérias da vida: música e gatos
Albert Schweizer

Como qualquer um que já passou muito tempo com os gatos já sabem, os gatos têm enorme paciência com as limitações da mente humana
Cleveland Amory

O tempo que passamos com os gatos nunca é desperdiçado
Colette

O ideal da tranqüilidade é um gato sentado
Jules Reynard

Já encontrei muitos pensadores e muitos gatos. Mas a sabedoria dos gatos é infinitamente superior
Hippolyte Taine

Ninguém pode ser dono de um gato, mas eles podem abençoá-los com sua companhia, se quiserem
Frank Engram

Duas coisas são esteticamente perfeitas no mundo: relógios e gatos
Emile Auguste Chartier

Respeitar o gato é o começo do senso estético
Erasmus Darwin

Eu fecho meu livro ´O Significado do Zen` e vejo o gato sorrindo para sua pele, e penteando-a cuidadosamente com sua língua cor de rosa e áspera. ´Gato, eu gostaria de te emprestar este livro, mas parece que tu já o leste´. Ele me olha com seu olhar penetrante, e ronrona: `Não seja ridículo. Fui eu que escrevi!
Dilys Laing
------
Vocês vão ver quanta gente importante pensou o gato:


"O gato é o único animal que conseguiu domesticar o homem."
( Mauss )

"O gato é um ser essencialmente livre e essa liberdade desafia o homem."
( Nise da Silveira )

"O gato possui beleza sem vaidade, força sem insolência, coragem sem ferocidade, todas as virtudes do homem sem vícios."
( Lord Byron )

"É preciso absolutamente pintar gatos!"
( Renoir )

"O homem é civilizado na medida em que compreende o gato."
( George Bernard Shaw )

"Meu jovem... se desejas escrever sobre seres humanos, a melhor coisa é ter um casal de gatos."
( Aldous Huxley )

"É fácil entender por que os gatos despertam sentimentos de antipatia nas pessoas. Um gato se mostra sempre bonito; sugestionando idéias de luxo, limpeza, e prazeres voluptuosos."
( Charles Baudelaire )

"Eu estudei muitos filósofos e muitos gatos. A sabedoria dos gatos é infinitamente superior."
( Hippolyte Taine )

"Observe um gato quando entra em um quarto pela primeira vez. Procura cheiros, não fica quieto um momento, não confia em nada até que examinou e travou conhecimento com tudo."
( Jean-Jaques Rousseau )

"Devo aos gatos o poder da honrosa dissimulação, um grande autocontrole, e a instintiva aversão por ruídos e a necessidade de me calar durante largos períodos."
( Colette )

"Prefiro os gatos aos cães porque não há gatos policiais."
( Jean Cocteau )

"Aos olhos de um gato, todas as coisas lhe pertencem."
( provérbio inglês )
----------
SUA ALTEZA, O GATO

Quem mata um gato tem sete anos de atraso. Solteiro que pisar rabo de gato não casa nos primeiros doze meses. Gato transmite asma. Engasgado, anuncia fome. Gato preto é agouro ou felicidade. Sendo de casa, para ele convergem os malefícios e deixa a família em paz. Sendo estranho, está trazendo as desgraças alheias. Assim pensam na Europa. Carlos I de Inglaterra tinha um gato preto como amuleto. Morreu o gato e o rei exclamou: - My luck is gone! E era verdade. It had. Next day he was arrested, informa Mr. Radford.

O barão do Rio Branco não os podia ver. Não há animal que tenha o maior número de suspeitas que o gato, companheiro amável ou hóspede intruso e detestado, também merecedor dos maiores elogios em prosa e verso de que existe notícia na espécie. Pintado pelos mestres, esculpido pelos grandes, imóvel em porcelana, marfim, ouro, prata, tornado amuleto, passeando nas pulseiras, colares, brincos, broches femininos, é modelo de uma Histoire des Chats (Paris, 1727), de Paradis de Moncrif, da Academia Francesa. A senhora Christabel Aberconway publicou (Londres, 1949), o A Dictionary of a Cats Lovers, com mais de duzentas biografias de amigos do felino, célebres em letras, artes, política, armas, economia. Cita apenas os mortos. Entre os vivos estavam Colette, La Gata, e o poeta T. S. Eliot, autor do Old Possun Book of Practical Cat. Félix Pacheco, Boudelaire e os Gatos (Rio de Janeiro, 1934), compendiara muita notícia literária sobre o assunto.

Tivemos mesmo uma famosa polêmica entre o brasileiro Tobias Monteiro, pelo gato, e o português Visconde de Santo Thirso, pelo cão. Sou pelo cachorro. Teluricamente. O povo não é realmente muito amigo do gato e sim da sua utilidade venatória, dedicada aos ratos. Senhorial, egoísta, esquivo, traiçoeiro, o gato é desdenhoso, fiel à casa e não ao proprietário. Ao conforto dos hábitos e nunca à pessoa que os proporciona. Mas é elegante, nervoso, magnético, incomparável nos gestos lentos, no espreguiçamento de odalisca entediada, nas graças sucessivas das atitudes originais e aristocráticas. Parece sempre superior ao dono da casa.

O brasileiro recebeu o gato do colonizador português e com ele as superstições. O português ama e teme o gato, numa ambivalência que o faz tratá-lo como a uma criança mimada ou divertir-se pondo-o dentro de um pote para partir às cacetadas ou pendurá-lo, vivo e miante, num alto do poste, numa vasilha sobre a crepitante fogueira nas tardes festivas do fim das colheitas. Nós temos o Gato no Pote, inseparável nas alegrias festeiras, fiéis ao tempo-velho.

Do Oriente, teve o português o respeito vagamente tenebroso ao gato. Viera com os orientais que se fixaram na Península Ibérica tantos séculos. Sua domesticação foi na África, entre os núbios. A presença no Egito não parece imediata, pois as primeiras dinastias não o tiveram. Mariette não encontrou desenhos de gatos nos túmulos de Sakara, 4500 anos antes de Cristo. Figuravam bois, asnos, cães, macacos, antílopes, gazelas, gansos, patos, cegonhas domésticas, pombas, galinhas da Numídia, as nossas guinés mas não camelos, girafas, elefantes, carneiros, galinhas e gatos.

Espalhou-se em tipos inumeráveis pelo Oriente e fez da China um centro de irradiação. Gregos e romanos não conheceram o gato e sua introdução mais viva na Europa é na Era Cristã. Essa é a lição dos mestres etnógrafos que não leram Aristófanes, na Festas de Ceres, 412 anos antes de Cristo, onde o gato era popular e já ladrão do jantar alheio, nas residências de Atenas. Dizem-no raro na Inglaterra do século X e sua popularidade na França é de meados do século XVI. A dispersão européia ter-se-ia verificado nos finais da Idade Média e multiplicado quando do ciclo das navegações, especialmente italianas. O português tê-lo-ia pelo árabe durante o domínio e também como carregamento de bicho raro em datas finais do século XV.

Não há vestígio pré-histórico europeu. Ausente das palafitas. Na Inglaterra deu, no século XVII, origem a lenda popular e querida do Whittington’s cat. O herói tivera apenas um gato por herança e levara-o para terras infestadas pelos ratos e que desconheciam o gato. Fez fortuna. Voltou rico e foi Lorde Mayor de Londres. A lenda foi dispersa por quase toda a Europa, inclusive Escandinávia e Rússia. Popularíssimo se tornou o gato na França com o Maistre Chat ou Chat botté, publicado por Charles Perrault em 1697 e que nascera de um conto do Pentamerone de Giambattista Basile, Nápoles, 1634, mas anteriormente aproveitado o tema por Straparola, 1560, Piacevoli Notti. O conto é popular em Portugal de onde o tivemos, mas não tem grande repercussão na literatura oral brasileira. É uma estória lida e não ouvida. Ausente das nossas velhas coleções.

Sagrado no Egito e com presença veneranda, custando a vida de quem o matava mesmo acidentalmente. Incontáveis múmias de Gaillard et Daressy recensearam (Faune Momifiée de L’Ancienne Egypte, Le Cairo, 1905). Para curar a coqueluche que ele provoca, come-se o gato assado. Quando de mudança, o gato vai dentro de um saco, com azeite besuntado ao focinho para perder o rumo da casa antiga. Gato preto é sinônimo do Diabo. Nenhum santo o escolheu para companheiro. O indígena que adorou o cão, muito pouca simpatia teve pelo gato. O malandro carioca descobriu que o couro do gato era matéria-prima para cuíca e tamborim. "Mas veio o samba. E com o samba veio a cuíca. E para a cuíca, o malandro descobriu que o couro mais forte e mais harmônico é o do gato" (Orestes Barbosa, Samba, Rio de Janeiro, 1933). Noel Rosa aconselhava-o para o tamborim.


(CASCUDO, Luís da Câmara. Locuções tradicionais no Brasil)
-----------
Nosso Poder de Não Praticar o Mal
Milan Kundera - "A Insustentável Leveza do Ser", 1983

"A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras: " o poder divino."

" No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem, e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo" Trocando de lugar com os animais: "Esse direito [o de matar um veado ou uma vaca] nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito:'Tú reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas', para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida."

"O homem atrelado à carroça de um marciano - eventualmente grelhado no espeto por um visitante da Via-Láctea - talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria (tarde demais) desculpas à vaca" Críticando Descartes: "Descartes deu o passo decisivo: fez o homem 'maître et propriétaire de la nature'. Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que a charrete sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira os gemidos dos animais, e é inútil lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório"

"Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços. Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão, por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo"

-------
Declaração Universal dos Direitos dos Animais

1 - Todos os animais têm o mesmo direito à vida.

2 - Todos os animais têm direito ao respeito e à proteção do homem.
3 - Nenhum animal deve ser maltratado.
4 - Todos os animais selvagens têm o direito de viver livres no seu habitat.
5 - O animal que o homem escolher para companheiro não deve ser nunca ser abandonado.
6 - Nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor.
7 - Todo ato que põe em risco a vida de um animal é um crime contra a vida.
8 - A poluição e a destruição do meio ambiente são considerados crimescontra os animais.
9 - Os diretos dos animais devem ser defendidos por lei.
10 - O homem deve ser educado desde a infância para observar, respeitar e compreender os animais.

Preâmbulo:
Considerando que todo o animal possui direitos;

Considerando que o desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza;

Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo;

Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a perpetrar outros;

Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante;

Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais,

Proclama-se o seguinte

Artigo 1º
Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência.

Artigo 2º
1.Todo o animal tem o direito a ser respeitado.

2.O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais

3.Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem.

Artigo 3º
1.Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2.Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia.

Artigo 4º
1.Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir.

2.toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este direito.

Artigo 5º
1.Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie.

2.Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas pelo homem com fins mercantis é contrária a este direito.

Artigo 6º
1.Todo o animal que o homem escolheu para seu companheiro tem direito a uma duração de vida conforme a sua longevidade natural.

2.O abandono de um animal é um ato cruel e degradante.

Artigo 7º
Todo o animal de trabalho tem direito a uma limitação razoável de duração e de intensidade de trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso.

Artigo 8º
1.A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação.

2.As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas.

Artigo 9º
Quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado, transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor.

Artigo 10º
1.Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem.

2.As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal.

Artigo 11º
Todo o ato que implique a morte de um animal sem necessidade é um biocídio, isto é um crime contra a vida.

Artigo 12º
1.Todo o ato que implique a morte de grande um número de animais selvagens é um genocídio, isto é, um crime contra a espécie.

2.A poluição e a destruição do ambiente natural conduzem ao genocídio.

Artigo 13º
1.O animal morto deve de ser tratado com respeito.

2.As cenas de violência de que os animais são vítimas devem de ser interditas no cinema e na televisão, salvo se elas tiverem por fim demonstrar um atentado aos direitos do animal.

Artigo 14º
1.Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais devem estar representados a nível governamental.

2.Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei como os direitos do homem.
-----------
Quintal de Sao Francisco Associacao Beneficente de Protecao aos Animais
Rua Humberto I - no 183
Vila Mariana
04018-030
Sao Paulo SP
Brazil
Phone: 005511 5081 5151 / 5081 5446
Fax: 005511 5081 5614
E-mail: quintalfrancisco@aol.com


Vocês têm abrigo?
Não, e consequentemente não podemos recolher animais.

Os animais que encaminhamos para doação são acolhidos em lares temporários onde são tratados, avaliados e preparados para adoção. Sempre temos uma imensa lista de espera para uma destas vagas. Se você quer nos ajudar recebendo um animal em caráter temporário em sua casa, fale conosco no 468 1834.

Eu tenho uma gata/cadela que teve 6 filhotes. Vocês recolhem?
Como não temos abrigo, NÃO podemos recolhê-los. Você mesmo pode e deve procurar bons donos para os filhotes colocando anúncios em jornal, em lojas de produtos para animais de estimação e em clínicas veterinárias. Antes de entregar os filhotes, vacine e vermifugue-os. Além disto, os filhotes podem ser esterilizados antes da doação. E por favor, esterilize a gata ou cadela mãe logo que ela estiver apta. Selecione bem os adotantes- não os entregue a qualquer um. Nós podemos ajudar divulgando os pequenos em nosso site, enviando para você informações sobre possíveis adotantes e dando dicas de como selecionar um bom lar.

Presenciei maus-tratos, o que posso fazer?
Consulte nossa cartilha de ação contra maus-tratos. Ligue para a gente (468 1834) caso não consiga êxito.

Por que vocês esterilizam animais?

A resposta é muito simples: não há lares para todos. A cada criança que nasce, nascem 15 cães e 45 gatos nos centros urbanos onde não há políticas de controle populacionalde animais.
No Distrito Federal, há milhares de animais sem lar vagando pelas ruas e sendo maltratados. É certo que poucas pessoas têm dificuldades de doarem filhotes. No entanto, é MUITO comum que uma parte considerável destes filhotes ( até os de raça, at'e os que foram vendidos a preços caros) sejam "passados para frente" indefinidamente , abandonados nas ruas, ou até LEVADOS por seus donos ao Centro de controle de zoonoses para serem sacrificados!


Existe ainda o problema das cadelas e gatas de raça que são utilizadas como "fábricas de filhotes" , vivendo em condições precárias e sendo usadas para reprodução cio após cio para sustentar seus donos gananciosos. Muitas são abandonadas quando não conseguem mais reproduzir.


Gatos e cães esterilizados não ficam apáticos, não perdem seus outros instintos (de proteção, de caça, etc). Enquanto alguns podem ganhar peso após a cirurgia, (o que é controlável com exercícios e ajustes na dieta) outros nunca apresentam este problema. Vivem vidas ativas, com algumas diferenças: têm menos propensão a fugir, pois não vão querer cruzar; os machos diminuem a agressividade, proincipalmente em relação a outros machos; diminuem as brigas; a possibilidade de câncer no útero e piometra nas fêmeas é eliminada e a de câncer nas mamas é reduzida.

Perdi um animal . O que faço?
Não perca tempo. Vá logo procurar o animal nas redondezas e perguntar a vizinhos.


Procure deixar alguém em casa para o caso de o animal voltar.


Mande os dados do animal, com foto, se possível, para nosso site (proanima@proanima.org.br)


Mande confeccionar faixas e afixe-as nas vias de entrada e saída de sua quadra.


Confeccione cartazinhos e coloque-os em lojas e clínicas veterinárias próximas a sua casa. Leve também seu cartaz para o Centro de controle de Zoonoses (Tel: (0xx61) 226-9336 em Brasíla) para o caso de ele ter sido apreendido.


Publique anúncio na imprensa local.

Encontrei um animal. O que faço?
Se possível, e se o animal parecer dócil, atraia o animal para a sua casa, e mantenha-o preso, isolado de seus animais. `As vezes deixa-se de salvar uma vida por que ficamos em dúvida se o animal está perdido ou só passeando. Lembre-se que nenhum proprietário de animal tem o direito reclamar de você ter prendido (em boas condições, é claro) um animal solto, dado que é obrigação do proprietário do mantê-lo sob controle.


Mande os dados do animal, com foto, se possível, para nosso site (proanima@proanima.org.br



Quero adotar um filhote de cão ou gato da raça X


É muito raro que qualquer entidade de proteção tenha filhotes de raça sob sua guarda. Em geral filhotes de raça são vendidos ou doados a pessoas amigas dos criadores. Ocorre, infelizmente, que muitas vezes esta venda/doação não é feita com informação, triagem, cuidado e acompanhamento e muitos destes animais (em geral a partir de 8-10 meses, quando tornam-se "adolescentes" trabalhosos e a "novidade" passou) acabam sendo "passados adiante" de forma `as vezes irresponsável, perdidos, abandonados ou mesmo levados para sacrifício. Outros "proprietários" esperam até que fiquem idosos e aí os abandonam. Em outros casos, há reviravoltas na vida das pessoas e os donos encontram-se sem condições de continuar a cuidar de seus animais. A MAIORIA destes animais não tem nenhum problema - frequentemente trata-se das características da raça que não foram pesquisadas. Outros não foram minimamente educados e desenvolveram maus hábitos -- em grande parte reversíveis . Alguns desenvolveram problemas de saúde e foram abandonados. Enfim, "sobram" muitos cães e gatos de raça, mas em geral, jovens, adultos ou idosos. Se você se interessa por um animal de uma determinada raça, primeiro, pesquise a raça, suas propensões naturais, necessidades e particularidades. Depois, considere adotar um adulto desta raça!


Não posso mais ficar com meu cão/gato. Quero achar outra casa para ele.
A primeira coisa a se perguntar é: eu realmente não posso ficar com o meu bicho de estimação? Muitas pessoas resolvem se desfazer do animal por problemas que poderiam ter solução. Pense bem -- às vezes alguma flexibilidade e disposição para ajustes de sua parte podem evitar dor e sofrimento.

Se o animal tem problemas de comportamento, já procurou alguem que possa ajudá-lo com treinamento, dicas, etc? Atualmente há especialistas em comportamento de animais e livros com muitas dicas úteis para a solução de problemas comuns. Se você não tem recursos, procure ao menos conseguir dicas com proprietários mais experientes. Nós também procuraremos ajudá-lo.


Se o animal tem problemas de saúde com os quais você não pode arcar financeiramente, já procurou um veterinário que possa facilitar o pagamento, ou uma clínica universitária que possa ter preços mais em conta? Lembre-se os médicos veterinários precisam cobrar por seu trabalho, pois são profissionais e este é seu sustento. Mas muitos estão dispostos a flexibilizar as condições, conseguir medicamentos mais acessíveis, etc, face a um problema financeiro real de um proprietário que mostra disposição de fazer sua parte. Outra opção é uma "vaquinha"entre amigos que gostem dos animais para o tratamento. Afinal, se algum amigo seu estivesse gravemente doente, você faria isto, não?


Se você vai se mudar, não presuma tão facilmente que seu animal não caberá em apartamento ou não será aceito pelo novo proprietário. Muitos cães de médio/grande porte ficarão mais felizes perto de seus donos em um apartamento -- desde que tenham dois a três passeios diários -- do que tendo que se ajustar a um lar com novos donos. Quanto a ser ou não aceito em novo local, isto depende muito de sua disposição em se mostrar um proprietário responsável. Termos de compromisso, depósitos de garantia, etc, são possibilidades de caminhos para mostrar ao proprietário do imóvel que você evitará problemas e que se responsabilizará por eles se ocorrerem.


Finalmente: se você realmente concluir que neste momento é REALMENTE impossível ficar com seu animal, não o jogue na rua. É crime e é um ato cruel e degradante.


Também não leve seu animal para um Centro de Controle de Zoonoses, achando que lá ele será adotado. As chances isto acontecer são remotas. Na verdade há boas chances de ele sentir muita tristeza e terror antes de ser morto de forma dolorosa. Mesmo que ele consiga ser adotado, ( de novo, as chances são mínimas!) ele poderá sair de lá com doenças e traumas - e nada garante que ele não será abandonado mais uma vez.


Então, quais são suas alternativas?

Primeiro, procure doar seu animal em bom estado de saúde. A adaptação já vai ser estressante e pode fragilizá-lo! Verifique se as vacinações e vermifugações estão em dia.


Se você tem uma cadela, esterilize-a antes de doá-la. Isto evitará que ela seja usada como "fábrica de filhotes". Esterilizar os machos também é uma boa idéia -- eles tenderão a fugir e brigar menos.

Anuncie o animal na imprensa local, em nosso site e em outros sites de adoção de animais e através de cartazinhos. Procure ter paciência até um bom adotante aparecer. Trie com cuidado para quem você vai doar seu animal e não entregue à primeira pessoa que aparecer. Visite o local onde ele ficará. Finalmente, após tomada a decisão, passe o máximo possível de informação sobre o animal para o adotante e esteja disponível para facilitar sua transição e adaptação.

Desta forma, você poderá possibilitar que seu amigo tenha um novo lar seguro e amoroso.

PSICANÁLISE: Wilhelm Reich

"A vida brota a partir de milhares de fontes vibrantes, entrega-se à todos que a agarram, recusa-se a ser expressa em frases tediosas, aceita apenas
ações transparentes, palavras verdadeiras e o prazer do amor (...)"
Wilhelm Reich (1939), em "Beyond Psychology", Ed. Farrar, Straus and
Giroux, 1994

"A raça humana enfrentaria o pior, o mais devastador desastre dos desastres
se, de repente, chegasse, de uma só vez, a ter pleno conhecimento da função
da Vida, da função do orgasmo, e dos segredos do assassinato de Cristo. Há
boas e justas razões para que a raça humana tenha-se recusado a conhecer a
profundidade e a verdadeira dinâmica de sua miséria crônica. Uma tal erupção
repentina de conhecimentos paralisaria e destruiria tudo o que, de certa
forma, mantém a sociedade caminhando, a despeito das guerras, da fome, dos
massacres emocionais, da miséria das crianças, etc."
Wilhelm Reich (1951), em "O Assassinato de Cristo", Ed. Martins Fontes,
4.a edição, 1991

"Ao longo de toda minha vida, tenho amado os bebês, as crianças e os
adolescentes, e também sempre fui amado e compreendido por eles. Bebês
costumam sorrir para mim pois tenho um profundo contato com eles, e crianças
de dois ou três anos mui freqüentemente ficam compenetradas e sérias quando olham para mim. Isto foi um dos grandes privilégios de minha vida, e quero expressar de alguma maneira meus agradecimentos por este amor que meus pequenos amigos me concederam. Possa o destino e o grande oceano de energia vital, do qual eles vieram e para o qual retornarão cedo ou tarde,
bendizê-los com satisfação, alegria e liberdade durante suas vidas. Espero
ter dado o melhor de mim para sua futura felicidade".
Wilhelm Reich (1951/52), na dedicatória de seu livro "Children of Future -
On the Prevention of Sexual Pathology", Ed. Farrar, Straus and Giroux, 1983

"O psíquico faz parte do vivo, mas o vivo não é nem uma parte nem idêntico
ao psíquico. Por conseguinte, pode-se corretamente avaliar o território
psíquico a partir do ponto de vista do vivo, mas não se pode compreender o
vivo apenas do ponto de vista do psíquico. Podemos avançar, assertivamente,
do psíquico para o vivo apenas se tomarmos como ponto de partida aquilo que
o psíquico tem em comum com o vivo, e não aquilo que o diferencia do vivo.
Em termos concretos, tem sido demonstrado, através da descoberta da energia
cósmica (isto é, do orgone), que é possível avançar dos afetos psíquicos via
as excitações fisiológicas, para a luminação celular biológica, e daí para a
energia celular biológica, e da energia celular para a energia orgone
atmosférica. Mas é impossível ir em direção à energia orgone atmosférica a
partir de uma idéia obsessiva ou uma fantasia histérica de estupro."
Wilhelm Reich (1947/48) em "The Devolopmental History of Orgonomic
Functionalism - Part Three". Revista Orgonomic Functionalism, publicada por
The Wilhelm Reich Infant Trust, Vol.3, 1991.

"O porquê de o funcionamento vital (inclusive o pensamento racional) ser tão
temido, constitui um dos grandes mistérios da estrutura irracional humana."
Wilhelm Reich (1951/52), em "People in Trouble - The Emocional Plague of
Makind", Ed. Farrar, Straus and Giroux, 1976

"O que toda religião chama de 'alma' é o sentimento de si mesmo (self), um
tipo de auto-percepção."
Wilhelm Reich (1952) em "The Silent Observer". Revista Orgonomic
Functionalism, publicada por The Wilhelm Reich Infant Trust, Vol.1, 1990.

"No fundo, a natureza — dentro e fora de nós —, só é intelectualmente
acessível através de nossas impressões sensoriais. As impressões sensoriais
são, basicamente, sensações de órgão, ou, colocando de outra maneira, nós
tateamos o mundo que nos rodeia através de movimentos de órgãos (=movimentos plasmáticos)."
Wilhelm Reich em "Ether, God and Devil/Cosmic Superimposition",
Ed. Farrar, Straus and Giroux, 1973

"Se nossas 'impressões' dos movimentos vitais refletem corretamente sua
'expressão'; se as funções básicas da vida são idênticas em toda a matéria
viva; se as sensações nascem das emoções; e se as emoções brotam de
movimentos plasmáticos reais, então nossas impressões devem ser
objetivamente corretas, contanto que, obviamente, nosso aparelho sensorial
não esteja fragmentado, encouraçado ou alterado de algum outro modo."
Wilhelm Reich em "Ether, God and Devil/Cosmic Superimposition",
Ed. Farrar, Straus and Giroux, 1973

"Fui acusado de ser um utópico, de querer eliminar o desprazer do mundo e
defender apenas o prazer. Contudo, tenho declarado claramente que a educação tradicional torna as pessoas incapazes para o prazer encouraçando-as contra o desprazer. Prazer e alegria de viver são inconcebíveis sem luta,
experiências dolorosas e embates desagradáveis consigo mesmo. A saúde
psíquica não se caracteriza pela teoria do nirvana dos iogues e dos
budistas, nem pela hedonismo dos epicuristas, nem pela renúncia monástica;
caracteriza-se, isso sim, pela alternância entre a luta desprazerosa e a
felicidade, o erro e a verdade, o desvio e a correção da rota, a raiva
racional e o amor racional; em suma, estar plenamente vivo em todas as
situações da vida. A capacidade de suportar o desprazer e a dor sem se
tornar amargurado e sem se refugiar na rigidez, anda de mãos dadas com a
capacidade de aceitar a felicidade e dar amor."
Wilhelm Reich (1942) em "Function Of The Orgasm - Vol 1 Of The Discovery Of
The Orgone", Ed. Farrar, Straus and Giroux, 1989

"Os adolescentes de hoje [1936] carregam um fardo infinitamente mais pesado
do que a juventude na virada do século. Esta ainda podia ser completamente
reprimida; mas, hoje, todas as forças da adolescência estão irrompendo.
Porém, a juventude carece tanto de suporte social quanto de capacidade
estrutural para lidar com essas forças".
Wilhelm Reich (1936), em "The Sexual Revolution", Ed. Farrar, Straus and
Giroux

CONTOMiguelaf: ESTUPRO


Bebeu o último gole de cachaça, bateu o copo no balcão, pegou o embrulho que o dono do bar lhe estendia e, cambaleando, parou na porta: Porra! Vai chover de novo! Saiu sem se importar com a lama que lhe cobria as sandálias. Apertou o gargalo dentro do embrulho, iniciando a marcha pelo meio da rua. Trouxa, tinha ficado um tempão no papo com o cara do boteco. Gordo enxerido fez perguntas demais.
Mas ele demonstrou nada, doutor. Imaginar coisa dessas, nem a coitadinha, com certeza, que quando veio morar com a gente foi porque a mãe num tava dando mais pra agüentar de sustentar, leva tua irmã com você, aqui ela vai ficar aprontando, disse, a velha tava doente, precisando internar. Podia negar, doutor? Então falei pro Josias, minha irmãzinha vem passar uns tempos com a gente. E fazia mais de mês que ela tava em casa que a nossa mãe morreu no hospital mesmo, que Deus a tenha.
O pé esquerdo perdeu o chinelo arrancado pela lama. Teve que voltar alguns passos à procura dele. Mais chuva e isto vira açude. Remexeu na lama, procurando o chinelo escondido; ao abaixar-se, arrotou cachaça com mortadela.
Emprenhada, nosso primeiro filho, Josias não gostou, não. Mas enganei ele, já era tarde pra tirar. Fazer o que, não ia deixar de outro jeito. Me virando de doméstica, a irmã cuidava da casa, trabalhadeira como eu, modéstia à parte. Sabe, como ia imaginar, com nove aninhos!
Pela rua deserta e enlameada, Josias precisava chegar antes de escurecer. Não conhecia direito aquele lugar; medo de se perder. Um refugio até que a poeira assentasse, a gritaria por causa daquela safada. O que não podia era ficar sem a cachaça. Quando acabou, arriscou sair até o bar.
Três quarteirões do barraco emprestado por velho amigo viajando. Só mais três dias, pouco mais, depois o perdão de Ivone. Mulher grávida de primeira vez é mole. A coisa acabaria logo, ninguém liga por muito tempo pra negrinha como aquela. Mormente depois de ouvir sua versão do acontecido.
Um vizinho telefonou pra casa da patroa.
Tinha bebido demais na tarde que aconteceu. Vazia, a garrafa caíra debaixo da cama. Pode ouvir vindo da cozinha: - To indo, mana. O Josias vai dormir até de noite, não perturba ele. Inté. Porta da rua batendo. Na cozinha, barulho de pratos e panelas, a cunhadinha fazendo faxina. Nove anos, seria mais bonita que a Ivone. Já era, aliás: sempre de shortinho apertado, gostosinha. Sentou-se na cama, meio tonto de tão excitado; ficou de pé e com fúria, arrancou a cueca; nu, abriu a porta, espiou: lá estava ela, de costas para ele. Deu tempo para se perguntar se aqueles olhares que ela lhe dava desde que se mudara, seriam mesmo de criança e parente.
A patroa me disse que tinha acontecido alguma coisa lá no meu barraco.
O coração dele disparou, mais parecia estar entre suas pernas, junto com o sexo, exigindo vida própria. A gostosinha. É só chamar que ela vem.
Minha patroa é gente fina, sabe? Ela disse, pode ir Ivone, amanhã terminas o serviço, e eu fui, adivinhando mil coisas ruins. Até incêndio. Quando cheguei perto do barraco tinha monte de gente na porta.
Sentiu nas pernas o vento frio. A bermuda curta demais. Tirou do embrulho a garrafa e abriu com os dentes, bebeu longo gole. Arrepiado fechou os olhos, sentindo queimar por dentro.
(Se abertos, teria percebido que pouco mais adiante alguns homens o observavam fazendo sinais entre si.) Merda, lá vem água - olhando para o alto quando os abriu.
A cunhadinha se virou, chocou-se ao vê-lo nu; um prato escorregou, o barulho a assustou ainda mais; instintivamente abaixou para recolher os pedaços. Ele deu três passos e já estava colado atrás dela. Foi se erguendo devagar, sem olhar para ele, sem falar, deixou os cacos do prato caírem ao sentir a mão amassando sua boca; sentiu-se erguida do chão. A levou assim para o quarto; arrancou-lhe o short, empurrou-a na cama, se jogou encima. Abriu-lhe as pernas. Gozou nela até gritar. De repente, ela disse vou te foder, cara, e no descuido do relaxo, saiu feito louca pra rua, nuinha e gritando! Depois todo mundo caindo encima dele. Nem de se vestir direito. Pinote! Devia era tê-la estrangulado naquela hora. Mas acreditou?.
Olhai o chinelo sujo dessa merda. Sentiu vontade de fumar e os homens apareceram na sua frente, em silêncio. Olharam para ele calmamente. Divisou até um sorriso: Vou descolar cigarro daqueles caras. Abriu a boca para pedir: o primeiro golpe lhe quebrou alguns dentes. Antes de desabar na lama, um pontapé na barriga o equilibrou por alguns segundos. Vomitou sangue. Sentiu-se arrastado, a garrafa ainda na mão. Os olhos enlameados se abriram para só ver as nuvens negras antes que se fechasse sobre ele a tampa barulhenta de um porta-malas. A garrafa sumiu.
Nem soube quanto tempo se passou até que aquela tampa se abrisse novamente. Arrancado com violência é jogado no chão. Noite. Só a luz dos faróis de um carro o ilumina, a ele e à chuva fina que cai. Levantam-no pelos braços. Em cima do capô de outro carro, vê pedaço de papelão, em sua mão aparece grossa caneta e em seu ouvido a ordem: Escreve aí, filha da puta: "Não estupro mais menor" Vai, escreve!. Por uns momentos a imagem de Ivone, do filho que não teve ainda e, principalmente dela, a cunhada, apareceram como em fotos de documento diante de si. Pensa: negrinha rampeira e traiçoeira, cabaço coisa nenhuma, até jogou na sua cara: já fizera bem mais gostoso. Vou te foder, cara. Devia ter acreditado. Escreve! Depois lhe arrancam a caneta, as mãos amarradas para trás, é posto de joelhos. Abre a boca e só sai: Vou te foder, cara. Ouve o primeiro disparo e sua garganta se parte. Os outros tiros apenas o sacodem. As balas já não acham sentido nele, apenas o grudam no chão encharcado e frio. O sangue esvaindo de vinte e seis furos aumenta a lamaceira daquele descampado.

(Inspirado em nota de jornal/1999)

quinta-feira, 30 de novembro de 2006

PSICANÁLISE: Cultura Caipira

O INCONSCIENTE DA MODA: PSICANÁLISE E CULTURA CAIPIRA

Osvaldo Luís Barison
Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira
Psicanálise de São Paulo.

O presente artigo mostra a correlação entre a cultura e o inconsciente, tendo como mediador uma "Moda Caipira", produção musical encontrada no interior do Estado de São Paulo e adjacências. A análise mostra os níveis de comunicação que a obra permite, desde os mais superficiais até as significações míticas.
Descritores: Inconsciente. Cultura popular. Arte. Música. Psicanálise.

Desde as formulações iniciais de Freud sobre o inconsciente, abriu-se um fértil terreno para diversas possibilidades de produção teórica. Não obstante a diversidade de visões que se tem sobre este conceito, há uma invariante no que diz respeito a assertiva de que o inconsciente não é só constituído por aspectos ontogenéticos, mas também por aspectos filogenéticos. O que se afirma com isso é que através de certos núcleos míticos, cada sujeito traz em si a história da humanidade, assim como a cultura é a produção das experiências de cada um e de todos os sujeitos.

Ao nascer, a todo indivíduo humano é oferecida a cultura específica de seu momento histórico e de sua localização geográfica, como uma grande possibilidade que precisa ser internalizada e discriminada para ser usufruída e transformada. O que diferencia um sujeito de outro é que, nas vivências, atualiza-se a história para o presente, com a roupagem característica do momento histórico e das experiências pessoais. É neste sentido que observamos que aquilo que temos de mais íntimo e pessoal é uma invariante, algo comum a todos humanos. Ou seja, núcleos míticos.

A idéia de núcleos míticos guarda uma relação de proximidade com as proto-fantasias propostas por Freud e com as pré-concepções da teoria de Bion. No entanto, preferimos usar o termo núcleo mítico, mesmo não sendo novo, pois, na Psicanálise, não está tão saturado quanto proto-fantasia e pré-concepção. De qualquer forma, usamos o termo na esperança de que possa significar o conjunto de possibilidades que, na mente, dá origem ao mundo de representações, como um umbigo deste conjunto. Acreditamos que uma das roupagens mais importantes para atualizar estes núcleos míticos, gerando e sendo gerado pelas significações, é a realizada pelas artes.

Entendemos que as artes são produções privilegiadas, complexas e que merecem abordagens diversas. A vertente que priorizaremos no momento é a que dá instrumentos para revelar tanto os meandros de uma cultura, quanto de um sujeito. 1

Uma obra funciona em uma freqüência dupla, pois ao mesmo tempo em que revela a cultura e o produtor, também serve para formatar a cultura e o receptor. Porém, esta função de dupla mão não se dá apenas no nível manifesto da estética da obra. Também ocorre uma comunicação latente, sub-liminar e que, mediada pela cultura e pela obra, coloca o artista e o receptor em um nível de sintonia inconsciente. A comunicação realizada transcende o nível formal.

Esta sintonia movimenta-se pela linguagem através dos valores, da ideologia, ou seja, da visão de mundo que a obra enseja. Contudo, esta visão de mundo também serve de roupagem para a atualização inconsciente dos núcleos míticos, tanto do artista, quanto do receptor.

Além dos aspectos formais e estéticos que a obra traz em si, assim como o prazer estético na recepção, é interessante notar os diversos procedimentos que estão presentes na relação dos sujeitos com a arte. Um dos procedimentos que saltam aos olhos e que está presente, em menor ou maior grau em todas as obras, pelo menos nas obras que vão até a chamada pós modernidade, é aquele segundo o qual a obra deve funcionar em uma freqüência psíquica muito próxima à dos sonhos, tanto na produção, quanto na recepção.

Considerando que toda obra de arte se utiliza de alguma linguagem, o lingüísta Roman Jakobson formula que entre as funções da linguagem há uma que permite a vinculação de sua natureza artística, estando configurada no que chama de "função poética." (Jakobson, s.d.). Baseando-nos nessa formulação, afirmamos que é como se todos os sujeitos tivessem em seu ego uma "instância poética" capaz de captar a "função poética da linguagem". Assim, entre as funções da mente, propomos a inclusão desta função significadora de objetos estéticos. É ela que nos permite estabelecer relações com uma obra de arte como se esta fosse do mundo da realidade. É ela que nos permite sofrer, apaixonar, odiar, pensar sobre a vida de novos prismas, enfim, darmos à verossimilhanç
a o estatuto de verdade.

No entanto, ocorre um par complementar entre os dois pólos da comunicação. Em um dos pólos está o sujeito que se relaciona com sua "instância poética" de uma maneira ativa, produzindo arte: este é o artista, o produtor. No outro polo da cadeia, em termos de produção, se colocam os sujeitos passivos: estes são os receptores que acolhem a produção artística, usufruindo-a dentro de si.

É dessa perspectiva teórica que analisaremos a Moda Caipira, Cabocla Tereza, uma das mais importantes construções de nosso cancioneiro popular.

A vantagem de se analisar uma produção artística popular e restrita a uma cultura específica (no caso a da população rural do interior do Estado de São Paulo e adjacências) é a de se poder entender até que ponto a produção está vincada na realidade subjetiva de um povo, uma vez que se trata de uma cultura homogênea e bem definida. Entretanto, não é o nosso objetivo uma análise geral da obra escolhida. Assim, não serão considerados os aspectos estéticos e poemáticos, bem como a definição de caipira, moda e a própria história da toada que analisaremos. Caso o leitor se interesse pelo assunto, recomendamos a leitura do trabalho "Moda Caipira: Cantador, Universo, Mediações e Participação Emotiva" (Barison, 1994). 2 O que nos interessa agora é rastrear como se dão os vários níveis de comunicação que a obra de arte permite, desde os mais superficiais até as significações dos núcleos míticos, podendo atuar nas chamadas fantasias inconscientes, demonstrando a estreita relação que existe entre a cultura e o inconsciente.

CABOCLA TEREZA
(Raul Torres e João Pacífico)

Declamado:

Lá no arto da montanha,
Numa casa bem estranha
Toda feita de sapê,
Parei uma noite o cavalo
Pra mor de dois estralo
Que eu ouvi lá dentro batê.

Apiei com muito jeito,
Ouvi um gemido perfeito
Uma voz cheia de dor:
" - Vancê, Tereza, descansa,
Jurei de fazê vingança
Pra mor de meu amor."

Pela réstia da janela,
Por uma luizinha amarela
Dum lampião apagando
Vi uma cabocra no chão
E um cabra tinha na mão
Uma arma alumiando.

Virei meu cavalo a galope,
Risquei de espora e chicote,
Sangrei a anca do tá.
Desci a montanha abaxo
Galopeando meu macho,
Seu dotô fui chamá.

Vortemo lá pra montanha,
Naquela casinha estranha
Eu e mais seu dotô.
Topemo um cabra assustado
Que chamando nóis prum lado
A sua história contô:

Cantado:

" - Há tempo fiz um ranchinho
Pra minha cabocla morá,
Pois era ali nosso ninho
Bem longe deste lugá.
No arto lá da montanha,
Perto da luiz do luá,
Vivi um ano filiz
Sem nunca isto esperá.

E muito tempo passô
Pensando em ser tão feliz,
Mas a Tereza, dotô,
Felicidade não quis.
Puis meu sonho neste oiá,
Paguei caro o meu amô,
Pra mor de outro caboclo
Meu rancho ela abandonô.

Senti meu sangue fervê,
Jurei a Tereza matá,
O meu alazão arriei
E ela eu fui percurá.
Agora já me vinguei,
É este o fim dum amô.
Esta cabocla eu matei
É a minha história dotô."


Esta toada de Raul Torres e João Pacífico, gravada por ambos pela Victor em 1940, tornou-se um dos maiores sucessos da Moda Caipira, recebendo mais de quarenta regravações, sendo a mais famosa a de Torres e Florêncio.

Tal qual ocorre em outras Modas Caipiras, nota-se que a maneira de apresentar uma música por introdução declamada cria um clima de intimismo. Configura certa solidão, numa atmosfera introspectiva que favorece o campo para a manifestação do sentimentalismo lírico, familiar ao romantismo. Portanto, compromete o ouvinte com a história, aguçando a disposição afetiva para entrar em contato com os sentimentos que a moda desperta. Diferentemente da parte cantada que, mesmo mantendo a atenção dos ouvintes, por envolver instrumentação, atenua, dispersando, a importância do que se está dizendo.

A segunda parte é a "toada" propriamente dita, melancólica e vagarosa. Na forma de discurso direto, o cantador empresta sua voz para que o ex-companheiro de Tereza conte ao doutor e ao personagem-cantador os motivos que o levaram a assassinar Tereza.

Logo no início ocorre uma localização espaço-temporal do cenário da história. Há uma descrição pitoresca do lugar (no sentido plástico) que revela uma atmosfera de melancolia e emotividade, perpassando todos os versos da primeira parte do poema.

Assim, há a realização de uma ancoragem que remete a uma localização sombria, com um cenário feérico, misterioso, rústico, sugerindo esconderijo de criminosos, lugar propício à tragédia e ao inusitado. Tais características vêm reforçadas pela presença do signo "noite". O cantador revela que foi atraído para aquele cenário em função dos dois "estalos" que ouviu, signo produtor de um efeito de tensão narrativa. Essa maneira de introduzir o universo do que será narrado comove o ouvinte e o remete a um mistério e a um clima onírico, algo que atrai e prende a atenção para o desenrolar da narrativa que se seguirá.

A narração parte do presente, de um "tempo zero", porém o fato ocorre no passado, numa noite não determinada. Trata-se de uma narração ulterior aos fatos.

O cantador narra, no tempo presente, fatos que presenciou em suas andanças pelo sertão. Quando a focalização se desloca para o ex-companheiro de Tereza, o personagem se vale de uma analepse remetendo ao passado para poder contar a seus interlocutores - o cantador e o doutor - sua história com a vítima. Dito de outro modo, a partir do tempo presente da enunciação, o cantador se remete ao passado para contar o episódio da morte da Cabocla Tereza. Porém, quando a focalização é deslocada para o assassino, ele retorna ainda mais ao passado para contar que aquele ato tinha motivações remotas. Do ponto de vista do assassino, seu relacionamento com Tereza é constituído por três momentos distintos, representados no enunciado pelas três estrofes da segunda parte:

a) No primeiro momento, o assassino revela uma situação idealizada juntamente com a mulher amada. As figurações de valores idealizados por signos como "ranchinho", "ninho", " montanha", "luz do luar", dão a impressão de uma situação amena, apaixonada, plena de romantismo e felicidade. Demonstra um clima de harmonia e equilíbrio. Porém, no final da primeira estrofe, o agente da narração aponta um princípio de ruptura expresso no verso " Sem nunca isto esperá".

b) O depoente inicia a segunda fase de seu relato fazendo uma elipse do tempo. Diz que "muito tempo passou". Durante este tempo, a vida correu normalmente. Porém, o que ele pensava ser felicidade, num clima de união, não era compartilhado por Tereza. Em sua fala, o personagem parece acreditar que sempre fora enganado pela companheira. Descobre, no seu entender, que não havia motivos para que ela o abandonasse, a não ser por uma índole perversa e dissimulada de sua companheira. Isto explica, do seu ponto de vista, o assassinato.

c) Na terceira parte, depois que Tereza abandona o rancho, ele relata sua reação frente à traição. A grande surpresa gera uma reação somática, expressa no "sangue que ferve" e que, para acalmar, necessita de uma ação vingativa em nível corporal. Para tanto procura Tereza e consuma a sua ira, como um ato catártico. Expia o mal, punindo com a morte a mulher ingrata e infiel.

Outro elemento importante da segunda parte desta toada é o aparecimento do personagem "dotô" a quem a fala é dirigida. Este doutor não é só a personificação de um personagem interlocutor, mas também o personagem a partir do qual os ouvintes passam a se identificar. Tal recurso acaba por transportar o ouvinte de uma atitude passiva de recepção para uma atitude viva, participativa, cumpliciada. Quer dizer, o ouvinte é guiado à condição de supremacia hierárquica de doutor e remetido a se posicionar, a formular algum nível de julgamento sobre o ocorrido.

Os procedimentos narrativos e as pistas para desvendar a identidade do cantador revelam que se trata de um boiadeiro, se não, pelo menos de um viajante. Ele tem participação nas ações da trama, porém não se envolve diretamente com a história narrada. O enunciador testemunhou alguns fatos e agora passa a relatá-los. Como será visto adiante, ele não se revela, quer dizer, não demonstra de forma explícita a sua subjetividade.

Apesar do cantador dizer que foi buscar o doutor, o que revela certa tomada de posição ante os fatos, ele não faz nenhuma intromissão que exprima seu juízo de valor sobre a traição, ou o assassinato. Este ocultamento da opinião pode denotar uma postura baseada em valores ideológicos. Neste sentido, o evitar comentários, a transferência da focalização da v oz do cantador para o personagem do ex-companheiro de Tereza, pode ser entendido como um posicionamento em relação ao episódio. É uma postura assumida pelo cantador, enquanto modelador, que vai ao encontro de um padrão cultural que está expresso em uma quantidade considerável de modas. Toda a forma de ver e de se relacionar com o mundo se dá pelo ponto de vista do homem, o que acaba por criar uma perspectiva enviesada na visão de mundo marcada por uma hierarquia de gênero. Os valores que emanam desta forma de ver excluem a óptica feminina. A mulher não participa com voz em nenhum momento. Ela se resigna, se pudermos assim dizer, em seu caráter de ser distante, perigoso e traiçoeiro. A mulher, enquanto musa caipira, por um lado deve ser idolatrada e, por outro, temida.

Em Cabocla Tereza, a característica cultural do machismo assume uma representação complexa e dissimulada. Veja-se que na moda o cantador não esboça qualquer comentário sobre as ações ocorrentes. Esta postura, que poderia denotar neutralidade, acaba por impregnar, na fruição dos receptores, uma idéia de naturalidade do ocorrido. Ou seja, transmite a mensagem de que é aceitável ao homem traído assassinar a mulher, restabelecendo a ordem moral e a situação de equilíbrio em relação ao que se aceita como tradicional e natural.

Apesar da personagem Tereza ser o título desta toada, ela não tem uma participação efetiva, não faz uso da voz em nenhum momento, sendo só referida pela visão do seu ex-companheiro. É a perspectiva dada por um homem que, ao cantar uma canção, estando imbuído da função de significar a realidade, professa a visão machista reinante na idiossincrasia de seu mundo, de seu contexto cultural.

Nesta toada, mais que o cantador, a cultura fala. Desde o nascimento, os sujeitos estão inseridos em um contexto no qual a organização familiar reflete e reassegura ao homem a posição de "dono" da mulher e da família. Observando o poder na estrutura familiar das camadas populares das regiões agrícolas, sabemos que todo ele é baseado no poder do homem e do pai.

É através de mensagens "latentes", reflexos de uma cristalização de valores culturais do meio, que Cabocla Tereza serve como exemplo, como "mensagem reasseguradora" de um alerta para as mulheres e uma autorização aos homens: a mulher que trai deve ser severamente punida. Assim, se por um lado a moda reflete valores arcaicos estagnados no meio rural, por outro, os retroalimenta. A organização social baseada na hierarquia de gênero, ou seja, no poder do homem, do pai, do chefe, assim como a repressão sexual da mulher, são conceitos necessários quando se tem divisão social entre classes e dominação de uma sobre outra. Ao se referir e, por conseqüência, referenciar estes valores como naturais e imutáveis, a moda reforça, involuntariamente, uma cristalização destes valores.

A questão da focalização, ou seja, a escolha da perspectiva em que uma estória irá ser narrada, é revelador da posição do autor implícito. Isto é, da concretização nos meandros do texto da presença da instância poética do autor de carne e osso. Assim, é como se houvesse uma invasão do inconsciente sobre a obra de arte, sendo que esta passa a ser veículo do que ocorre em suas fantasias inconscientes e que são revestidas por conteúdos presentes na cultura e partilhados, inconscientemente, pelos seus pares. Tal qual em um sonho manifesto em que as idéias são produzidas esteticamente sob a vigilância da censura, o conteúdo latente demonstra algo implícito, algo que o sujeito deveras deseja.

É neste sentido que podemos afirmar que as características mais arraigadas na cultura de um povo são baseadas nas projeções de aspectos inconscientes que entram em sintonia com a cultura em um processo de retroalimentação. Portanto, além de refletir valores aceitos pelo grupo social, esta toada de Raul Torres e João Pacífico utiliza-se de uma temática recorrente nas Modas Caipiras e nas canções populares: a traição amorosa. Muito do fatalismo que existe nesta toada, e nas demais canções que tratam das "histórias de amor", se deve à sensação da perda de uma situação idealizada com a companheira. Quando o narrador se refere a uma situação romântica disfórica, sempre representa o término de um relacionamento idealizado, provocado pela traição da mulher. É comum que algum rival apareça fazendo a cesura da ligação, roubando a "mulher perfeita".

São canções que criam grande empatia com os ouvintes, sugerindo questões presentes no imaginário popular. Buscando o auxílio da psicanálise para entender a razão da recorrência desta temática nas canções populares, podemos observar que são modas construídas sobre um núcleo mítico da relação triangular entre um homem, sua companheira e a aparição de um rival que destrói a integração que havia entre ambos. Este núcleo guarda semelhanças com o que, em psicanálise, se conhece como a base da vivência edípica. A teoria psicanalítica entende que sobre esta base é alicerçada toda a constituição do indivíduo. É a vivência que funda o sujeito. Assim, na marcha do desenvolvimento pessoal, todos os humanos, para se constituírem como tais, passam por esta vivência, independente de suas condições históricas, sociais ou culturais. Por ser uma situação muito parecida com a tragédia Édipo Rei, de Sófocles, Sigmund Freud importou o nome do personagem grego para o que designou de "complexo de Édipo". Freud atribuíu ao complexo de Édipo um caráter nuclear na organização do indivíduo. No próprio dizer do psicanalista: "Todo ser humano encontra ante si o trabalho de dominar o complexo de Édipo, e se não o faz, sucumbirá à neurose". (Freud, 1905, p.1227). Desde Sófocles, este núcleo mítico tem sido explorado de várias maneiras pelos artistas ao longo da história, revelando a importância da vivência relacional do triângulo entre filho, mãe e pai.

Na vivência do conflito edípico, a criança passa por uma primeira fase na qual a mãe é o único objeto externo a si. Estabelece um vínculo simbiótico, permanecendo exclusivamente ligado a ela até se haver com a dolorosa percepção de que, além dele e da mãe, existe um "outro". Mais ainda, este outro tem a preferência do amor da mãe. Conseqüentemente, toda a sensação de falta e dor que a criança experiencia é atribuída à negação, por parte da mãe, em supri-lo, uma vez que, na crença do infante, a mãe está suprindo o pai. Esta situação triangular provoca toda a sorte de sentimentos violentos e ambíguos. Em função da bissexualidade constitucional da criança, tanto o pai quanto a mãe recebem uma carga de sentimentos hostis e amorosos. No menino, dentro de um desenvolvimento normal, o pai é tido como modelo de identificação e a mãe como objeto amoroso. Ao mesmo tempo em que o menino ama e deseja a mãe, ele também a odeia por deixá-lo viver a dor. Além do mais, em função da bissexualidade, o menino:

... não apresenta somente uma atitude ambivalente em relação à mãe, senão que se conduz ao mesmo tempo como uma menina, apresentando a atitude carinhosa feminina para com seu pai e a atitude correlativa, hostil e ciumenta para com sua mãe. (Freud, 1923, p.2713).

Assim, a relação com o pai também é ambivalente. O pai é amado, é um modelo para a identificação da criança. Contudo, também é um rival temido, merecendo muita carga de ódio e desejo de destruição. A quebra desta situação dramática que a criança vivencia desde o seu nascimento até por volta dos sete anos, se dá pela repressão dos desejos destrutivos em relação ao pai e dos desejos sexualizados pela mãe. Fica garantida, assim, a proibição ao incesto. É através desta explicação, aqui grosseiramente resumida, que a psicanálise entende a inscrição do indivíduo na cultura. Mas o complexo de Édipo continua ativo pelo decorrer da vida, expressando-se nas fantasias, nos sintomas, nas produções artísticas e na cultura.

A nossa hipótese é que os poetas tornam-se porta-vozes deste núcleo mítico do sujeito e o representam nas suas obras com temática sobre a traição amorosa. Nestes casos, substituem a experiência da perda da mulher-mãe para o rival-pai, pela perda da mulher-amante para o rival-outro. Assim, a composição atualiza e exprime o conflito edípico. O indivíduo se "reconhece" na obra ficcional como se ele também tivesse vivenciado a mesma história.

Em Cabocla Tereza não se tem uma expressão do conflito edípico como um todo, mas do seu estágio inicial. Veja-se que o personagem-narrador descreve, na primeira estrofe da segunda parte, que:

No arto lá da montanha,
Perto da luiz do luá,
Vivi um ano filiz
Sem nunca isto esperá.


Estes versos sugerem que ele e Tereza viviam uma relação solidária, apartados de tudo e de todos. Uma relação simbiótica, por assim dizer. A traição de Tereza rompe com esta situação idílica. A vivência concreta da traição empreendida pela mulher-amada é insuportável para o personagem-narrador. É como se ele estivesse relatando a dor da experiência de alguém que não está preparado para saber que existe, além dele e a "mãe", outras pessoas na vida. Assim, esta toada parece atualizar, para o contexto do momento, a dor e a decepção que o menino experiencia ao "descobrir" a existência do pai e a ligação deste com a mãe. Mais do que isto, a moda realiza uma expiação catártica da ira que esta descoberta provoca na criança. Ao ouvirmos a fábula de Cabocla Tereza, realizamos, inconscientemente, a fantasia destrutiva motivada pela vivência de sermos "traídos" pela mãe, o que não nos é legado realizar na realidade. Assim, é proporcionado ao ouvinte, através de uma identificação com o personagem-narrador, a possibilidade de reviver em fantasia uma fase de nossa própria relação triangular com a mãe e o pai, funcionando como uma ab-reação dissimulada. Esta talvez seja uma das explicações para a recorrência desta temática nas Modas Caipiras e populares em geral, criando tamanha empatia com os ouvintes.

Cabocla Tereza gera um campo perfeito para a identificação do ouvinte com a tragédia narrada pelo cantador. É claro que esta identificação é mais eficaz aos membros da cultura caipira, pois é a expressão de valores sintonizados com a visão de mundo desta cultura. Mas, também, o núcleo mítico da relação triangular, da exclusão e da ira que isto provoca, é revestido na forma poemática presente na estética desta toada, provocando a atualização e expiação fantasiosa de um estágio da vivência edípica.

BARISON, O.L. The Unconscious of Folksongs: Psychoanalysis and "Caipira" Culture. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.281-95, 1999.

Abstract: The present paper shows the relationship between culture and the unconscious, having as mediator a "Moda Caipira", a kind of folksong, found in the interior of São Paulo state and surroundings. The analysis shows the communication levels of the folksong, both the superficial and the mythical ones.
Index terms: Unconscious. Folk culture. Art. Music. Psychoanalysis,

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR e SILVA, V.M. Teoria da literatura. 8.ed. Coimbra, Almedina, 1991.

BARISON, O.L. Moda caipira: cantador, universo, mediações e participação emotiva. São José do Rio Preto, 1994. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista.

BARISON, O.L. Vertentes: psicanálise e literatura. Psicanálise Escrita: Revista do Crep, n.1. 1996.

BARROS, D.L.P. Teoria semiótica do texto. São Paulo, Ática, 1990. (Série Fundamentos, 72)

CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7.ed. São Paulo, Ed. Nacional, 1985.

CÂNDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito. 7.ed. São Paulo, Duas Cidades, 1987.

CINTRA, I.A. Dois aspectos do foco narrativo: retórica e ideologia. Revista de Letras, São Paulo, v.21, p.5-12, 1981.

CINTRA, I.A. Teorias representativas sobre o foco narrativo: uma questão de ponto de vista. Stylos, São José do Rio Preto, Ibilce,v.52, 1981.

ENCICLOPÉDIA da música brasileira: erudita, folclórica e popular. São Paulo, Art, 1977. 2v.

FREUD, S. El poeta y los sueños diurnos. In: Obras completas. 3.ed. Madrid, Nueva, s.d.

FREUD, S. El sinistro. In: Obras completas. 3.ed. Madrid, Nueva, s.d.

FREUD, S. (1905). Tres ensayos para una teoria sexual. In: Obras completas. 3.ed. Madrid, Nueva, s.d.

FREUD, S. Un recuerdo infantil de Goethe en poesía y verdad. In: Obras completas. 3.ed. Madrid, Nueva, s.d.

FREUD, S. (1923). El yo y el ello. In: Obras completas. 3 ed. Madrid, Nueva, s.d.

JAKOBSON, R. Lingüística e poética. In: Lingüística e comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, s.d.

1 Em outro artigo analisamos a capacidade que a arte tem de emocionar. Trata-se de Vertentes: psicanálise e literatura (Barison, 1996).

2 Dissertação de Mestrado, apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração "Teoria da Literatura", do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Universidade Estadual Paulista - Campus de São José do Rio Preto. Orientação do Prof. Dr. Romildo Sant'Anna, 1994.


----------------------------------------------------------

© 2006 Instituto de Psicologia

Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, Trav. 4, 399 Bl. 23
Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira
05508-900 São Paulo SP - Brazil
Tel.: +55 11 3091-4452
Fax: +55 11 3091-4462

revpsico@edu.usp.br